Por que tanta gente gosta de discutir nas redes sociais? Faz mal?
Resumo da notícia
- Por mais que as redes sociais tenham como proposta aproximar as pessoas, é comum a ocorrência de discussões e desavenças nessas plataformas
- Limitações na linguagem e conteúdos direcionados estimulam posturas intolerantes entre usuários
- Responder com agressividade só aumenta a ansiedade e o estresse, e nos deixa num estado constante de alerta que pode trazer adoecimento psíquico
A capacidade de a internet disseminar informações em poucos segundos e para muitas pessoas está entre os artifícios mais adorados e odiados da nossa época. A possibilidade de fazer com que uma publicação se espalhe igual a um rastilho de pólvora e ganhe o apoio de muitos "seguimores" é bastante tentadora. Mas também é grande a chance que se torne motivo para ataques e a sede momentânea da mais nova batalha digital.
Não é preciso muito para que certa discórdia vire uma briga generalizada na internet. Começa com uma tirada irônica, depois segue com ofensas, comentários pejorativos até chegar a acusações infundadas. De repente, há um turbilhão de respostas, entre memes, hashtags e xingamentos. Opiniões se confundem com argumentos e o contágio emocional é bastante evidente. Não tem mais volta, os agressores e defensores se manifestam incessantemente e o post ganha cada vez mais visibilidade.
É um fenômeno que, além de muitos cliques e visualizações, costuma despertar reações exaltadas e impulsivas que geram ainda mais atritos e desentendimentos. Vale dizer que normalmente essas discussões são movidas por afetos, e não pela razão. Ao agir pela emoção, a escuta fica prejudicada e a racionalidade não tem nenhum espaço. Afloram comportamentos típicos em situações de alerta e inerentes ao ser humano, tais como medo, raiva, angústia e hostilidade.
Permanecemos a postos para o conflito, em um ambiente onde o recurso mais importante para despertar reflexão e compreensão parece inexistente: o diálogo. Mas por que essas polêmicas e desavenças chamam tanto a atenção? O que faz com que os embates tenham tanta repercussão, se aumentam a frustração e os níveis de estresse? De onde surge a vontade quase incontrolável de participar?
Ninguém é #perfeito
Por mais difícil que seja, é da natureza do homem se relacionar. Somos sociáveis e gregários. É na convivência com nossos pares que temos reconhecimento, desenvolvemos a cognição, tomamos consciência das emoções, alimentamos a existência, enfim, viramos humanos. As brigas e os debates fazem parte do cotidiano, assim como os ruídos e os mal-entendidos da comunicação. Afinal, cada um preserva sua própria singularidade e é natural que ocorram discordâncias.
Mas entre os padrões disseminados na sociedade, existe uma crença utópica de funcionamento ideal das interações que rejeita qualquer tipo de alteração. Baseada em valores ligados à ordem e estabilidade emocional, para que não haja interferência na produtividade nem no rendimento do trabalho, essa mentalidade rejeita os debates e discussões, como se fossem choques atípicos que não deveriam acontecer. Dessa forma, os episódios são sempre vistos com muita atenção e interpretados com demasiado interesse.
O viver em grupos e em comunidades é constituído por uma série de trocas e jeitos de socializar, que incluem atritos e divergências. Claro que nem tudo se resume em paz ou guerra. O convívio abrange uma multiplicidade de formas de estar no mundo, que variam de acordo com as subjetividades e os padrões desenvolvidos em vivências anteriores. Entre um ponto e outro há muitas possibilidades, que podem ser exploradas de várias maneiras, inclusive com o surgimento de novas ferramentas para nos comunicar, como as redes sociais.
Inclusive a proposta dessas plataformas é justamente facilitar a interação e aproximar pessoas. O que poderia dar errado?
Narciso acha feio o que não é espelho
Presentes há cerca de 10 anos em nossas vidas, esses espaços onde revelamos rotinas e compartilhamos preferências não são neutros. Mesmo que sejam ferramentas gratuitas, pertencem e funcionam de acordo com determinações de empresas privadas. Ou seja, as dinâmicas sociais estabelecidas nesses ambientes variam de acordo com os mecanismos disponíveis, que são criados e pensados por corporações.
Acontece que no formato atual, pouco colaboram para que haja diálogo, troca construtiva e o reconhecimento das diferenças. Ao contrário, os recursos estimulam a manutenção de ideias pré-concebidas e dificultam a negociação dos pontos de vista, criando verdadeiros abismos entre os usuários, dentro e fora das mídias digitais.
Primeiro porque a linguagem, uma importante mediadora nas relações, é restrita. Diferente do que acontece nas conversas presenciais, em que há gestos, expressões, tom de voz, temporalidade e outros sentidos envolvidos, em um debate online os usuários se limitam a afirmações ou reagem conforme as poucas emoções disponíveis. Depois porque o alcance das informações é determinado por algoritmos que privilegiam o direcionamento de conteúdos sempre com o mesmo viés, conforme as preferências de cada perfil.
O resultado? Uma timeline homogênea, onde as ideias, notícias e propagandas que aparecem seguem os gostos e comportamentos típicos daquele consumidor. Não há diversidade na realidade que é apresentada diariamente. Os símbolos, os discursos e as representações seguem um padrão conforme o nicho daquela pessoa. Ao acessar somente aquilo que você se identifica e tem como verdade, a tendência é desenvolver menos tolerância e mais discriminação com o que fica de fora da sua própria bolha.
Após anos imersos nesse contexto artificialmente construído, que oferece narcisicamente espelhos de nós mesmos, não é mero acaso que muitas reações estejam pautadas pela agressividade e intransigência. Há uma sensação de recompensa ao estar entre os que pensam de forma semelhante e de enfrentamento quando nos deparamos com o que é diferente. Assim, o ataque aparece subjetivamente como defesa ao que não reconheço e por isso identifico como ameaça.
Sem pluralidade e diálogo nas interações, que servem justamente para estimular a ampliação e diversificação do pensamento, não há crescimento tampouco transformação daqueles que se relacionam. As experiências ficam restritas e empobrecidas, perdemos a chance de vivenciar outras propostas e processos, e permanecemos mais suscetíveis à manipulação coletiva. Diante dessa padronização, ficamos mais rígidos e inflexíveis, incapazes de manifestar sentimentos e de compreender a expressão dos que não se enquadram na nossa visão de mundo. Sobram agressividades deslocadas e que são potencializadas pela lente de aumento da internet.
Por que reagimos assim
Existem algumas explicações que contemplam as origens desse comportamento duelístico. Desde os tempos primitivos, na luta da espécie pela sobrevivência, o homem se organizou em comunidades, teve atitudes colaborativas entre os seus e fez ações em prol do coletivo. Mas, ao mesmo tempo, também agiu de maneira violenta e de enfrentamento na presença de outros grupos que podiam representar perigo dentro do seu domínio. Nas variadas formas de se constituir socialmente, transitou entre a cooperação e a coerção com o próximo.
Além dos fatores ancestrais, nossas reações também são influenciadas pela configuração do nosso olhar. Se os estímulos, referências e experiências passadas foram baseadas em condutas e modos de ser autoritários, com imposição de padrões rígidos e não aceitação das singularidades, a pessoa desenvolve uma grande dificuldade em lidar e compreender quem age, pensa e sente diferente. Do mesmo jeito, quem só conviveu com posturas permissivas e não enfrentou situações adversas, cria a ideia de que está sempre com a razão e não sabe admitir ou concordar que existem outras possibilidades.
Quando não vivemos uma socialização voltada para a alteridade, que busca reconhecer as diferenças na formação do outro e em si mesmo, bem como pensar as diversidades que constituem as relações, tudo aquilo que não pertence ou que não pode fazer parte de mim é interpretado como ameaça. Como diz o ditado popular "a melhor defesa é o ataque", se vemos ou lemos algo que soa perturbador, agimos para invalidar os envolvidos e mobilizamos vários recursos de proteção que provocam ansiedade e desconforto, e só contribuem para a falta de acordo ou entendimento na comunicação.
Humildade e respeito pelos múltiplos vieses
Vale dizer que dificilmente os enfrentamentos que partem de palavras ou atos violentos levam a uma solução satisfatória. De pouco adianta "xingar muito no Twitter" ou em qualquer outra rede social. Além de aumentar a irritação e a insatisfação, ao participar desses embates constantes, ficamos com a sensação de viver em um mundo caótico e perigoso, do qual precisamos nos defender a todo o momento. Ficar nesse estado de alerta contínuo pode causar adoecimento psíquico, já que o medo e a ansiedade são alguns dos gatilhos para a depressão.
Pela lógica das redes, quanto mais interações agressivas o usuário estabelecer, mais vai receber conteúdos com o mesmo direcionamento. Muitas vezes reproduzimos esses padrões simplesmente porque não sabemos existir de outra forma. Mas são comportamentos que podem ser revistos durante toda a vida.
Como a interpretação dos fatos varia conforme a nossa cognição e sentidos, faz parte de um processo de desconstrução complexo e de aprendizado contínuo para conseguir enxergar a validade dos múltiplos vieses. Encarar as situações com tolerância e humildade é o caminho para estabelecer relações mais saudáveis e respeitosas, consigo e com os outros. Faz parte de um importante amadurecimento internalizar que somos plurais no modo de agir e pensar, e mesmo que aconteça com alguém de fora do nosso grupo, é fundamental denunciar casos de discriminação e discursos de ódio contra minorias sociais —que são crimes.
Sejam online ou não, as comunidades são compostas por pessoas e cabe a nós melhorar a qualidade das falas e informações que nelas circulam. Ser responsável ao compartilhar publicações, ter cuidado na escolha das palavras, tentar fazer o melhor uso da linguagem para ser bem compreendido, além de praticar a reflexão sobre o lugar que o outro fala são alguns meios de construir interações mais horizontais e democráticas.
Fontes: Deborah Christina Antunes, psicóloga e professora do programa de pós-graduação em psicologia da UFC (Universidade Federal do Ceará); Deborah Karolina Perez, psicóloga e professora do Centro Universitário das Faculdades Integradas de Ourinhos; Milton Campos, professor honorário da Universidade de Montreal e professor da Escola de Comunicação e do Instituto de Psicologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
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