Na pandemia, pré-prints servem mais à retórica que à ciência
Pesquisadores deveriam ser mais "seletivos" e "cautelosos" na hora de decidir submeter seus estudos a repositórios de pré-prints, principalmente se os trabalhos envolvem "drogas, vacinas ou dispositivos médicos, e os resultados de um estudo podem afetar diretamente o tratamento de pacientes". Assim o periódico Jama (Journal of the American Medical Association) conclui editorial sobre a publicação antecipada de artigos científicos, antes da revisão pelos pares.
A edição desta semana do Jama traz uma suíte de três artigos sobre pré-prints, como esses trabalhos publicados sem o benefício de um processo de revisão editorial ou do olhar crítico de especialistas independentes são chamados. Um dos artigos é o editorial, uma peça de opinião, mas os outros dois são descritivos - um tratando dos repositórios de pré-print em geral e outro, específico sobre o medRxiv, que está online há pouco mais de um ano e se dedica, como o nome sugere, a estudos da área biomédica. "Repositório" é o nome dado aos serviços online que agregam, organizam e disponibilizam pré-prints.
O editorial chama atenção para o fato de que "existe um pressuposto geral de que o acesso mais rápido à informação melhorará o desfecho para os pacientes (...) No entanto, está claro que, em muitos países, informações de mídias sociais e pré-prints foram usadas por políticos e médicos para defender tratamentos específicos", atitude que dificulta a realização de estudos de qualidade e "pode levar ao uso inadequado de certas drogas, com o potencial de causar dano".
Os exemplos escolhidos para retratar esse uso espúrio são os da hidroxicloroquina e plasma de convalescente nos Estados Unidos, mas seria muito fácil ampliar a lista para um sem-número de pseudotratamentos e tratamentos até promissores, mas adotados de modo apressado e irresponsável no contexto da pandemia, incluindo o coquetel de antibióticos, vermífugos, minerais e vitaminas promovido no Brasil como parte de políticas públicas de saúde, tanto na esfera federal quanto em iniciativas municipais.
Explosão no medRxiv
A comparação entre os números do repositório biomédico medRxiv nos períodos pré e pós-pandemia é espantosa. Estabelecido em junho de 2019, o serviço recebia, até 31 de dezembro do ano passado, uma mediana de seis artigos ao dia. Neste ano, a mediana é de 51, sendo que 73% de todo o material recebido é relativo à covid-19. Desde sua fundação, 18 artigos foram removidos do repositório a pedido dos autores, sendo 13 apenas neste ano —e destes, todos relativos à covid-19.
O medRxiv tem critérios para aceitação de trabalhos: não basta carregar o artigo na plataforma, há um processo de triagem que verifica alguns indicadores mínimos de credibilidade e qualidade (o que ajuda a explicar por que certos "estudos" alardeados nas redes sociais, e que chegaram a circular como PDFs "órfãos", nunca apareceram por lá).
Ao todo, foram submetidos ao serviço mais de 11 mil artigos, e mais de 9 mil, ou 89%, foram aprovados para inclusão no repositório, uma taxa de rejeição de 11%. A taxa de rejeição de artigos tratando especificamente da covid-19 é bem mais alta, de 31%.
Os acessos ao serviço explodiram no último ano. Em dezembro de 2019, o medRxiv registrou cerca de 100 mil visualizações de "abstracts" (resumos) de estudos disponibilizados. Em junho desde ano, foram quase 6 milhões. No pico, em abril, 10 milhões.
Retórica
Se a objetivo principal da publicação de pré-prints é a possibilidade de refinar o manuscrito e debater os resultados com a comunidade científica antes da publicação formal, os dados do medRXiv sugerem que o processo é um fracasso: apenas 14% dos trabalhos apresentados lá viram-se aceitos por periódicos com revisão pelos pares, e menos de 10% foram debatidos ou comentados na plataforma (os autores do artigo no Jama chamam atenção para o fato de que mais debates podem ter ocorrido em outros suportes, como redes sociais).
Na pandemia, a finalidade declarada dos repositórios de pré-prints —facilitar e acelerar a comunicação entre especialistas — acabou dando lugar a outra, a de tornar resultados visíveis para imprensa, formuladores de políticas públicas e o público em geral. De instrumento científico, o pré-print reduz-se a instrumento retórico.
Embora o fato seja pouco reconhecido, todo artigo científico é —também — uma peça retórica: trata-se, afinal, de um texto que apresenta razões para tentar convencer seus leitores a chegar a uma determinada conclusão a respeito de uma determinada hipótese - seja aceitá-la, rejeitá-la ou passar a considerá-la mais ou menos provável ou plausível.
O que distingue a prosa científica dos outros tipos de retórica, como o discurso político ou o artigo de jornal, são os tipos de razões considerados aceitáveis no discurso das ciências: tipos, como análises estatísticas e avaliação de evidências, muito bem delimitados, definidos e presos a critérios estritos de confirmação, rigor, racionalidade e honestidade. O problema do pré-print é que o principal avalista da qualidade e adequação dos tipos de razões usados é exatamente aquilo que lhe falta: a revisão pelos pares. O que sobra então é só retórica, sem ciência.
Numa época em que os repositórios de pré-print deixaram de ser o speakeasy —como eram chamados os discretíssimos bares da época da Lei Seca nos Estados Unidos — dos cientistas e viraram grandes botequins abertos ao público, o pré-print se converte em instrumento de persuasão não dos colegas, mas das massas. Vimos a manobra ser usada seguidas vezes nesta pandemia: pela cloroquina, pelos vermífugos, por estratégias "alternativas" exóticas de manejo do isolamento social.
O editorial do Jama pede que os pesquisadores sejam mais seletivos e criteriosos antes de apresentar tratamentos e curas a repositórios de pré-print, para evitar consequências sociais indesejáveis. A questão que fica no ar é: e se as consequências indesejáveis forem, na verdade, desejadas?
*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)
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