Transtorno que faz pessoa ter várias personalidades é provocado por traumas
Resumo da notícia
- Para ter TDI é preciso ter pelo menos duas identidades. Mas há casos de pessoas que alternam mais de 20
- Elas podem ser de ambos os sexos, apresentar idades e comportamentos diferentes
- Geralmente são criadas após uma experiência traumática ou um estresse intenso
- A pessoa pode ou não saber da existência dessas outras identidades
- O tratamento é feito com psicoterapia e medicamentos para as comorbidades
"Minha memória é como um grande vaso que foi derrubado de uma janela. Todos os pedaços estão lá —alguns grandes, outros pequenos, e outros reduzidos a poeira. Enquanto tento colá-los, reunindo uma memória à outra, partes da história se tornam claras e nítidas, mas sempre restam muitas lacunas e passagens perdidas. Meu primeiro dia na escola? Perdido. Férias em família? Nada. Meu livro favorito? Quando aprendi a andar de bicicleta? Todas memórias impossíveis de se encontrar em meio às sombras que envolveram minha infância".
É com essa descrição que Alice Jamieson, 51, começa a narrar sua história no livro Hoje Eu Sou Alice - Nove Personalidades, Uma Mente Torturada (editora Larousse). Pouquíssimas pessoas conhecem alguém que tem diferentes identidades. Quando muito, a maioria de nós já viu um filme ou outro sobre o assunto, como Fragmentado, de 2016, M. Night Shyamalan. Mas nem sempre o cinema mostra de forma fiel o drama que é viver isso na pele, já que os enredos não detalham muito o caminho de traumas e tragédias que leva uma pessoa a ter esse transtorno.
No caso da escritora britânica, ela foi vítima de abuso sexual, físico e emocional durante anos, principalmente por parte do pai.
As identidades que Jamieson desenvolveu, de ambos os sexos e diferentes idades, foram um mecanismo que usou para suportar a violência que sofreu desde que era bebê. "Personalidades diferentes emergiram pela dissociação em diferentes períodos da minha vida, cada uma com memórias específicas do abuso --uma verdadeira biblioteca de obscenidade e perversidade", conta.
Só aos 24 anos ela foi diagnosticada com TDI (transtorno dissociativo de identidade), depois de sofrer muito dentro de uma família vista como modelo pela sociedade local.
Para Jamieson, descobrir a existência de suas outras identidades foi como montar um quebra-cabeça imenso e assustador. Algo que ela começou na adolescência e continuou durante o longo tratamento. Mais difícil ainda foi perceber que não tinha controle sobre si mesma. "Se tivesse poder sobre as outras personalidades, eu as impediria. Não tenho esse poder. Quando elas saem, assumem o controle. Tenho brancos, e o tempo passa sem que eu veja, e não é só o tempo que perco, mas a consciência e a dignidade também", desabafa.
Outras vidas
O transtorno dissociativo de identidade, antigamente chamado de transtorno de múltiplas personalidades, é raro. Um estudo publicado no periódico Journal of Psychiatric Research mostra que a prevalência é de 1,5%. O mais comum é ele ter origem em traumas que surgem em consequência de abusos de qualquer natureza, principalmente na infância, quando a criança cria novas identidades para escapar de experiências traumáticas.
Segundo Marcel Vella Nunes, psiquiatra do Hospital Santa Mônica, quem tem deficiência intelectual ou um transtorno de personalidade, como o histriônico e o borderline, também é mais vulnerável a desenvolver a condição, pois costuma ter uma resiliência menor.
O TDI também aparece em casos de estresse extremo, como o que ocorre, por exemplo, com pessoas que enfrentam um problema grave, são vítimas de um sequestro ou perdem um ente querido. Acontecimentos profundamente dolorosos podem fazer a estrutura emocional de algumas pessoas ruir. Nesse sentido, o transtorno "ajuda" a evitar que as memórias cheguem à consciência, evitando um sofrimento que não são capazes de aguentar.
É o que Jamieson relata em seu livro. "Eu era protegida por uma amnésia profunda possibilitada pela existência de personalidades sem nome que guardavam memórias enterradas muito profundamente para serem expressas verbalmente". Ter partes da identidade original "sequestrada" aparentemente a ajudava a se livrar do peso do passado difícil. O problema é que ela não conseguia se refugiar no esquecimento o tempo todo, pois vira e mexe as memórias do trauma invadiam sua consciência sem pedir licença.
Para ter TDI é preciso ter pelo menos duas identidades. Mas há casos de pessoas que alternam mais de 20. São como vidas paralelas, construídas em detalhes. "A identidade é complexa, composta por ancestralidade, sexualidade, personalidade, religiosidade, profissão, autoimagem, valores, cultura e pela narrativa (historia de vida). Assim, cada identidade pode apresentar as mais diferentes combinações entre esses componentes todos habitando o mesmo indivíduo", explica Fernanda Sassi, coordenadora do Ambulatório Integrado de Transtornos de Personalidade e do Impulso do IPq-HCFMUSP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
A psiquiatra, que também é supervisora do programa PES (Pensamento, Emoção e Sentimento), da mesma instituição, diz que essas identidades são inventadas, fantasiadas pela pessoa. E que elas podem ter comportamentos completamente diferentes, incluindo o temperamento, a forma de falar e até mesmo a letra. Geralmente são acionadas por um gatilho emocional, de forma involuntária.
O sofrimento de lembrar
Mas nem sempre as pessoas que têm TDI percebem que há algo de errado, como aconteceu com Jamieson. Pelo contrário, elas costumam ter amnésia dissociativa, que consiste em lacunas no lugar dos acontecimentos traumáticos e lapsos de memória, durante os quais não sabem o que aconteceu. Outras vezes se deparam com pistas de coisas que disseram ou fizeram, mas não conseguem se lembrar. Tudo isso causa um sofrimento enorme. "A pessoa passa a ter problemas para trabalhar, estudar ou se concentrar em qualquer tarefa. De repente, se vê em locais desconhecidos, ou em posse de objetos que não reconhece como seus", comenta Sassi.
A pessoa passa por várias situações que a deixam insegura, como não saber como e quando chegou a um lugar. Se é reconhecida, reage como se estivesse sendo confundida com outra. Em casos mais graves, pode acontecer até de ela descobrir que abandonou o emprego e já estar trabalhando em outra empresa sem ter o registro mental dessa mudança. Quem tem TDI pode ter uma lembrança total de todas as identidades ou parcial de algumas delas. "Mas o mais comum é ocorrer o que a gente chama de amnésia assimétrica, ou seja, o que uma identidade falou a outra não tem conhecimento", afirma Nunes.
Ela pode até relatar as experiências vividas nesses momentos com distanciamento, como se estivesse assistindo a um filme sobre a própria vida. E mesmo quando se recorda, essa lembrança é confusa, pois as memórias são fragmentadas e nebulosas. Ela vive com medo do que pode acontecer durante os lapsos, de se perder ou de nunca mais recobrar sua identidade original.
Se a perda de memória causa sofrimento, saber da existência de outras identidades é ainda mais doído. À medida que as terríveis lembranças de Jamieson vinham à tona e que ela entrava em contato com suas identidades, por vezes se desconectava da realidade, tinha crises nervosas, automutilava-se e se afundava no vício em drogas.
Justamente por ser tão difícil absorver essa realidade que ela é digerida aos poucos. Até porque a pessoa pode fazer coisas que não condizem com a sua identidade original, como ser agressiva ou magoar alguém de quem gosta muito. De qualquer forma, é inevitável que com o tempo essas condutas afetem os relacionamentos interpessoais, pois o ambiente fica carregado de desentendimentos e desconfianças por parte dos familiares, amigos ou colegas de trabalho.
Quem tem TDI muitas vezes é acusado de simular outras identidades para obter algum benefício, sendo que esse processo é totalmente inconsciente. Vale ressaltar que os característicos lapsos de memória também podem estar relacionados a causas orgânicas como epilepsia, intoxicação exógena (de álcool e drogas) e trauma cranioencefálico. Mas, nesses casos, a pessoa vaga sem rumo em vez de encarnar suas "vidas paralelas".
O TDI também pode ser confundido com esquizofrenia, histeria e demências como a doença de Alzheimer. Isso porque a pessoa pode ouvir vozes e ter alucinações visuais, táteis, olfativas e gustativas. Mas esses sintomas são diferentes das alucinações típicas dos transtornos psicóticos, pois ela os sente como se viessem de uma identidade alternativa.
É possível controlar
São os lapsos de memória, prejuízos na vida social, profissional e familiar que levam essas pessoas a buscar um tratamento, a única maneira de colocar um ponto final nos sofrimentos e perdas que vão se acumulando no decorrer da vida. Os profissionais de saúde mental fazem uma análise minuciosa da história de vida de quem tem TDI para compreender o que está por trás do transtorno. "A gente não vê só a fotografia do quadro que a pessoa está apresentando. A grande questão é olhar a fundo a motivação disso estar acontecendo", frisa Nunes.
Tão importante quanto o transtorno em si são as comorbidades. É comum estarem associados a ele o transtorno do estresse pós-traumático, automutilação, depressão e ansiedade graves, crises não-epilépticas, disfunção sexual, dependência química ou alcoólica, transtornos alimentares, transtorno de personalidade borderline e comportamento suicida. Essas condições tornam o tratamento mais complexo e demorado, pois um sintoma alimenta o outro, o que tende a perpetuar o TDI. Quanto mais o tempo passa, a recuperação é difícil. E também quando a pessoa não conta com o apoio da família e dos amigos ou tem uma relação próxima com os abusadores.
O tratamento do transtorno é feito com medicamentos para as comorbidades e psicoterapia para integrar os estados de identidade. "O cerne do tratamento é uma intervenção psicológica para buscar a compreensão do dilema que a pessoa está enfrentando e resolvê-lo", resume Nunes. Ela tem como objetivo fortalecer as funções egoicas (mecanismos de ação sobre o comportamento da pessoa). Com isso, ela consegue acessar suas lembranças dolorosas de uma forma mais segura, de modo que as identidades problemáticas e razões das dissociações possam ser exploradas.
A hipnose também pode ser útil nesse processo, pois facilita a comunicação entre as identidades, de forma que elas colaborem com a integração do ego. Após a dessensibilização gradual das memórias traumáticas, essas identidades alternativas vão sendo integradas até restar apenas a original. Esse é o desfecho esperado, que nem sempre acontece. Em alguns casos, tratamento é feito em ambiente hospitalar para oferecer um suporte melhor, caso ela tenha crises muito fortes.
Respeito e cuidado ajudam
Ouvir que está interpretando um personagem, que está ficando louco ou que não tem nada só faz quem tem TDI se sentir pior. "É importante validar o que a pessoa está apresentando, sentindo, e tentar sugestionar sua melhora", orienta Nunes. Ter um olhar humano e cuidadoso, despido de preconceitos, faz com que ela não se sinta sozinha com a sua dor. "Sempre que possível, devemos acolher o sofrimento e apoiá-la para que procure ajuda e se engaje no tratamento. Uma pessoa com essa condição deve sempre estar acompanhada por um familiar ou amigo até que esteja mais estável", enfatiza Sassi.
O apoio fez a diferença para Jamieson. Durante o longo tratamento, ela foi se sentindo cada vez mais segura para entrar em contato com as emoções que sentiu com o abuso. Chorou muito por tudo o que aconteceu e viu sua dor ficando menos aguda. "Dessa forma a terapia resultou na integração de algumas das personalidades, mas a consequência mais importante foi o fato de eu conseguir funcionar melhor e me sentir mais confortável comigo mesma como adulta, integrada ou não", conclui. Foi assim que ela recomeçou a vida.
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