"Fui abusado na infância, mas constelação familiar me ajudou a perdoar"
Rodrigo Nogueira, 41, professor universitário, sofreu abuso sexual de um vizinho mais velho durante toda a infância. O trauma trouxe obesidade, alcoolismo e dependência química quando jovem, além de sérios problemas de relacionamento com a mãe. Ele só conseguiu virar a página de seu passado quando buscou ajuda na constelação familiar, tipo de prática terapêutica, além da própria terapia. Décadas depois, veio a coragem de contar para a mãe toda a verdade e encarar de frente o abusador, quando esbarrou com ele por acaso. Abaixo, leia o depoimento que Nogueira deu ao VivaBem.
"As pessoas julgam, criticam sobre o tempo que as vítimas levam para falar sobre um abuso sexual. Elas não sabem que por trás desse 'por que tanto tempo?' vem muita vergonha, timidez e culpa. Um homem que não é homossexual carrega a vergonha ainda mais por conta da nossa sociedade machista, patriarcal e homofóbica. Sou hétero, não tenho filhos e sofri abuso sexual dos cinco aos 12 anos de idade. Lembro que culpava muito a minha mãe por ela trabalhar fora e não poder me proteger. Só anos mais tarde, por meio da constelação familiar (e também da terapia, que faço até hoje), consegui falar sobre os traumas.
Durante um período da minha vida desenvolvi um monte de compulsões, descarreguei as minhas dores e culpas no álcool e nas drogas (cocaína). Eu não gosto de usar essa palavra "limpo", porque dá a ideia que eu estou sujo, então hoje estou em redução de danos, me cuidando, sem beber e sem usar drogas. É uma luta complicada demais, parte da minha dependência eu culpo o abuso, sim. A droga não chegou até mim por conta do abuso, mas eu poderia ter sido mais forte e ter evitado, se eu tivesse uma cabeça melhor. Tenho os meus altos e baixos, não estou justificando as minhas escolhas, mas tudo tem uma explicação, o que me levou a trocar as minhas compensações.
O abusador era um vizinho. Acredito que ele devia ter uns 20 anos, quando eu tinha apenas cinco. Os anos se passaram e eu continuei sendo abusado por ele. Eu entendia que era uma coisa errada, porque era feito escondido, num lugar sujo, tipo aquele cômodo nos prédios daquela época, década de 1980, onde os funcionários guardam roupas e objetos. Eu sentia que havia algo de muito errado e carreguei durante muitos anos: culpa, vergonha, humilhação, raiva e mágoa.
Eu sempre me vi muito como depressivo. Naquela época não se falava tanto como se fala hoje, e aí veio o abuso, só para completar algo que já era ruim: me tornei um adolescente mais depressivo ainda.
Nunca passou pela minha cabeça tirar a minha vida ou me vingar dele. Hoje eu faço trabalho social, trabalho com pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social, por meio de ONGs. São dois trabalhos voluntários que me ajudam a lidar também com a situação.
Anos de abusos
Os abusos aconteciam quando eu saía para brincar no pátio do prédio onde eu morava. Me recordo dele nunca ter usado violência bruta, mas é uma violência, né, era algo como "vem aqui, vamos conversar".
Eu lembro que teve uma época que ele foi preso, teve a maior polêmica no prédio. Eu fiquei quieto, não falei que eu era uma das vítimas também. Ele "mexia" com outros meninos, mas lembro que ele ficou pouco tempo preso. Foi uma das melhores épocas da minha vida, porque eu não tinha contato com ele.
Na adolescência, eu não pensava muito sobre o assunto e compensava tudo na comida —fui um adolescente muito gordo. Depois vieram as drogas. Eu saia de uma coisa e ia para outra de uma forma rápida e intensa, isso porque, ao trocar as compensações, não dava tempo de pensar nas coisas do passado. Mas quando eu lembrava, sentia muita raiva, mas não raiva da pessoa, mas raiva da minha mãe. Eu a culpava, mas sentia que tinha alguma coisa errada, não era normal. Eu não podia sentir raiva dela. Você vai tomando consciência, porque a sua idade vai passando e você para de ser aquele adolescente rebelde, de achar que a sua mãe não te amou, que ela te abandonou, que um cara veio? aquela história toda.
Os abusos tiveram fim quando me mudei do prédio em que morava, mas com o passar dos anos eu já estava tomando conhecimento do que acontecia.
"Eu reencontrei o abusador décadas depois, por acaso, numa pizzaria"
Aos 37 anos, eu estava com a minha ex-noiva e esbarrei com o abusador em uma pizzaria, em Icaraí, bairro nobre de Niterói (RJ). Ele já era um senhor, devia ter mais de 50 anos, estava com a esposa e os pais dele. Não senti raiva nenhuma, senti que tinha liberado completamente o perdão. Não senti aquela coisa clichê de 'ter pena'. Eu não senti nada. Talvez compaixão, não sei. Na hora, pensei 'que m****, ele deve ter enfrentado a vida inteira diante das decisões erradas que ele tomou'.
Uma vez eu li um artigo de uma blogueira que dizia que deveria ser tratado não somente quem sofre o abuso, mas também o abusador. O abusador vai abusar sempre. Ele também precisa de tratamento, não é a castração que funciona, eles inventam inúmeras formas de abusar. É muito duro dizer isso, mas fez sentido quando eu li esse artigo sobre tratar da família, da criança e do abusador, porque só assim esse ciclo se quebra.
Um ano antes desse 'encontro', eu havia feito uma coisa chamada constelação familiar. Aquilo tinha sido fantástico para mim. Quando o vi naquela pizzaria, foi um gatilho, e eu pude perceber que eu estava bem. Percebi que eu já podia contar para a minha mãe, dar um abraço nela, pedir a ela desculpa por ter sido um filho ruim durante tanto tempo, por tê-la culpado por isso e aquilo. Acho que foi um gatilho tê-lo visto, porque aquilo me levou a perceber que eu estava preparado para conversar com a minha mãe.
A constelação me abriu os olhos e consegui tirar toda a culpa de cima da minha mãe. Eu vi que ela precisou trabalhar fora, que naquela época, sozinha, não tinha outro jeito. Ela precisou me criar dessa forma, precisava me deixar sozinho e também tinha uma empregada que me maltratava, mas isso é uma outra questão. Eu sei que era muito ruim estar dentro de casa e fora de casa. Eu nunca sabia em que lugar era melhor estar. Melhor era estar sozinho. Mas eu resolvi contar a ela o que aconteceu.
A busca por ajuda
A constelação familiar mudou a minha vida. Foi um divisor de águas. Você tem que estar pessoalmente envolvido, porque você sente a energia, a vibração do lugar. Fiz duas sessões em Teresópolis (RJ) —eu morava em Friburgo na ocasião — e lembro que eu tinha que tratar a relação com a minha mãe, pois não estava dando mais.
A constelação puxou tudo isso, veio tudo à tona e ainda bem que eu fiz a tempo, antes de a minha mãe morrer e eu carregar essa culpa (por culpar a minha mãe por não ter feito nada, por ter sido uma mãe sozinha criando um filho sozinho e que precisava trabalhar).
Eu nunca vi a necessidade de fazer terapia, mas comecei a ver a importância dela depois de fazer constelação. Mexeu tanto comigo que eu vi que tinha que fazer terapia e trabalhos paralelos (voluntariado). Eu estava numa ladeira sem freio. Hoje também faço uso de remédio para depressão.
Vida que segue
O abuso atrapalhou muito as minhas relações afetivas, mas eu sou uma pessoa muito introspectiva, um pouco antissocial, e isso pode soar para as pessoas como antipatia e arrogância. Me tornei uma pessoa mais solitária por conta disso.
Às vezes eu acho que é carma, que eu precisava passar por isso, não sei, não fico buscando explicações para isso, busco mais compreensão para a vida, para seguir adiante. Fui atrás de ajuda porque eu não aguentava mais viver com raiva. Pode soar clichê isso, mas odiar, sentir raiva é muito cansativo. Eu escolhi amar. Amar é melhor. Amar é mais suave. Eu fui atrás de amor.
De que forma eu poderia fazer isso? Eu tive que ter ajuda psiquiátrica, psicológica e da constelação familiar, além de muita fé e trabalho social. Uma série de coisas que eu precisei fazer para que aquele sentimento de mágoa e ódio fosse embora. Eu consegui perdoar. Eu consegui virar a página."
Saiba mais sobre a constelação familiar
Criada pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, a constelação familiar não é reconhecida pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia) nem pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), por falta de estudos científicos que comprovem sua eficácia, embora abordagens —como o psicodrama — e teorias que a respaldam sejam reconhecidas.
A dinâmica pode ser feita em grupo ou individualmente. Durante a sessão são recriadas cenas que envolvam os sentimentos e sensações que o constelado sente sobre sua família. Nas sessões em grupo, são os voluntários e participantes que vivem essas cenas. Já nas sessões individuais podem ser usados esculturas de bonecos ou quaisquer outros recursos disponíveis —setas, pedras, adesivos, âncoras de solo — para representar os diferentes papéis do sistema.
A ideia é identificar a origem de um comportamento ou sentimento que, muitas vezes, pode ter "nascido" em uma geração passada, uma espécie de "herança familiar emocional". Assim que o problema é identificado durante a representação, há uma espécie de reconciliação entre os "atores" para que a ordem seja restabelecida e o alívio apareça. Mas a compreensão nem sempre é sentida imediatamente, pode demorar meses e muita reflexão.
O pós-sessão e os novos insights advindos de uma sessão são intensos, importantes e devem ser trabalhados com todo o cuidado. Por esse motivo, mesmo que o CFP não proíba nem contraindique a constelação familiar, o ideal é que ela funcione como prática complementar à psicoterapia —inclusive, o próprio SUS (Sistema Único de Saúde) já a autorizou com essa finalidade.
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