"Pequena grande Paty": com 1,10 m, ela conta como lida com o nanismo
Com baixa estatura devido ao raquitismo e a osteomalacia, Patricia Alves de Souza, 35, odiava ser baixinha e queria ser alta como as amigas. Medindo 1,10 m, ela era chamada de anãzinha e usava saltos para parecer maior. Desde não ser vista na fila do caixa ou ser confundida com uma criança, Patricia adaptou-se e transformou as dificuldades em oportunidade. Ao usar uma muleta, ela ensina coreografias de fit dance e mostra seus vídeos na internet. Conheça a história dela:
"Do meu nascimento aos cinco anos de idade, me desenvolvi dentro do esperado, até que apresentei alguns sinais: minhas duas pernas ficaram encurvadas e desenvolvi escoliose. Como sofria muitas quedas, tinha medo de ficar de pé e passei a me arrastar no chão ou a engatinhar para me locomover.
Na mesma época, o meu irmão mais velho também passou a apresentar os mesmos sinais. Meus pais ficaram preocupados e nos levaram à AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente). Fizemos exames, fomos avaliados e recebemos o diagnóstico de raquitismo e osteomalacia com deformidades ósseas. Uma das características do tipo de raquitismo que temos é a baixa estatura, por isso, entramos para o grupo de nanismo.
O médico disse que a causa do nosso raquitismo é genética, possivelmente pelo fato de os meus pais serem primos de primeiro grau. Foi um choque para toda a família.
Médico disse que eu viveria só até os 14 anos
Reaprendi a andar com o uso de muletas. Após receber alta da AACD, eu e meu irmão iniciamos um tratamento no Hospital das Clínicas, de São Paulo. Baseado na experiência com um paciente com o mesmo quadro que o nosso, o médico disse eu viveria até os 14 anos e meu irmão até os 17. Eu tinha 10, e ele, 11.
Minha mãe não soube lidar com essa notícia e foi embora de casa um ano depois, no meu aniversário de 11 anos. Ela deixou um bilhete falando que não iria aguentar. Ela chegou a ligar duas vezes e depois sumiu, nunca mais soube dela. Não tenho raiva, saudades e nem mágoas, simplesmente não sinto nada em relação a ela.
Eu e meu irmão fomos morar com o meu pai e a minha madrasta. Eles nos tratavam normal, mas com o tempo fui percebendo que era diferente.
Parei de crescer aos 11 anos, cheguei à altura que tenho hoje, 1,10 m. Dos 13 aos 16, tive uma fase rebelde, culpava meu pai, Deus e o mundo.
Queria ser alta como as minhas amigas, elas já estavam na fase de paquerar e namorar e, por mais que eu me arrumasse, nenhum menino me notava e se interessava por mim por causa da minha altura e da muleta.
Aos 13 anos, me apaixonei por um garoto e desenhei uma régua na parede do meu quarto para medir quantos centímetros mais alta ficava com determinado salto. Não usava tênis, chinelo, rasteirinha, só usava calçados com salto, como sandália, tamanco e botas.
Me chamavam de anãzinha, muletinha e tortinha na escola
As minhas amigas da escola eram carinhosas, me tratavam como uma bonequinha e me pegavam no colo. Já os meninos eram maldosos, faziam bullying comigo. Ouvia apelidos do tipo anãzinha e muletinha. Tinha um menino que me chamava de "tortinha" toda vez que eu passava, um dia me subiu o sangue e dei um soco no nariz dele. Nós fomos para a diretoria. Meu pai me advertiu e disse que resolvemos os problemas com diálogo, nunca com agressão.
Ao longo da vida tive que me adaptar e superar os obstáculos que encontrei pelo caminho dentro e fora de casa. Como parte das atividades domésticas, subo num banquinho para conseguir pegar as roupas que ficam no fundo da máquina, e num puff para lavar a louça, pegar as coisas no congelador ou no armário.
Para dobrar lençol, edredom ou cobertor, estico no chão e dobro por partes. No banheiro, lavo tudo o que alcanço da metade para baixo, outra pessoa limpa da metade para cima.
Na rua, uma das dificuldades é subir nos degraus do ônibus e da lotação. Geralmente preciso da ajuda de alguém ou fazer alguma manobra com a muleta, o que acaba me machucando.
Outra situação bem recorrente é as pessoas não me verem na fila por causa dos balcões altos nas lojas e restaurantes. É comum o atendente chamar próximo, repetidas vezes, e só me ver depois de eu gritar e levantar a mão.
Outro episódio é as pessoas me confundirem com uma criança. Teve uma vez que fui em uma gravação de um programa de TV. Estava na plateia, a apresentadora se abaixou para me dar um abraço e disse: 'Ai, que susto, achei que fosse uma criança'. Revidei de forma irônica: 'Ai, que susto, achei que fosse um poste'. Todos deram risada.
Por muitos anos, evitei sair de casa por medo do que as pessoas poderiam pensar ou falar ao meu respeito. Isso se dava pela minha não-aceitação.
Em uma das discussões com meu pai, ele disse que eu tinha que tirar o foco da deficiência. Um dia ele me levou para trabalhar com ele, ele era entregador de contas de água. Nós fomos em uma comunidade, na casa de uma moradora que ele conhecia. Ela tinha um filho acamado com paralisia cerebral. Ao ver o menino daquele jeito e ouvir que ele não andava e nem falava, tive um choque de realidade. Percebi o quanto era privilegiada mesmo com a minha deficiência.
Daquele dia em diante passei a me aceitar, a gostar de mim do jeito que sou e a lutar contra o preconceito. Até hoje sofro discriminação, as pessoas apontam, comentam, dão risada, às vezes chego a me sentir uma alienígena.
Teve um dia que um menino ficou tão eufórico que gritou para a mãe dele: 'Vem ver a anã'. Teve gente que já tropeçou e caiu na rua de ficar me olhando. Em todas as situações, pergunto o que foi, debato, me imponho para ganhar respeito. Não permito mais ser humilhada.
Pessoas ficam admiradas que danço com muleta
Após a minha aceitação, muitas coisas melhoraram e tive algumas conquistas. Tive o Ricardo, meu único filho, com o meu ex-marido. E desde 2016, sou casada com o Adriano. Nenhum deles tem nanismo.
Na vida profissional, trabalhei como operadora de telemarketing, auxiliar administrativo e atualmente sou professora trainee de fit dance. Minha história com a dança começou quando era criança, adorava dançar em casa com as minhas amigas. Sempre foi um hobby. Voltei a dançar no ano passado por incentivo do meu marido, ele me encorajou a fazer algo que gostasse para ocupar a minha mente.
Coloquei um vídeo da Anitta, no YouTube, e resolvi me gravar para ver se ainda sabia dançar. Postei no meu Instagram (@pequenagrandepaty). O pessoal curtiu e isso me motivou a continuar. Comecei a pesquisar sobre coreografias e conheci o fit dance. Fiz um curso, fui credenciada como trainee e, no começo deste ano, fui habilitada para dar aula em uma academia.
O que as pessoas mais admiram é como consigo dançar com a muleta, ela faz parte do show, para mim é natural.
Para quem um dia já foi retirada de uma sala com 25 candidatos e ouvido que aquela vaga não era para mim por causa da minha deficiência, essa experiência com o fit dance me trouxe uma grande realização pessoal e profissional.
Fiquei parada por causa da pandemia e agora estou num treinamento para voltar a dar aulas. No meu perfil, mostro as coreografias e a minha rotina. Recentemente lancei uma série de episódios de situações que eu já vivi, como uma simulação de entrevista de emprego.
Fui desacreditada pela medicina, muita gente duvidou da minha capacidade e todas as provações me tornaram uma pequena grande mulher. Sou pequena no tamanho, mas grande nos meus sonhos, nas minhas atitudes e na minha vontade de fazer a diferença no mundo".
8 perguntas sobre nanismo
1. O que é nanismo e quais as causas?
Nanismo é um conceito relacionado à altura do indivíduo e não a uma doença específica. São pessoas que apresentam estatura muito abaixo que os indivíduos mais baixos de uma determinada população. Não existe uma altura limite para definir uma pessoa como portadora de nanismo, mas, em geral pessoas adultas com menos que 1,45 m são consideradas com nanismo. O nanismo pode ser proporcionado ou desproporcionado (membros mais curtos em detrimento do tronco ou o inverso). Várias causas podem atrapalhar o desenvolvimento e o crescimento do esqueleto, desde deficiências na produção ou aproveitamento do hormônio do crescimento, deficiências nutricionais e de algumas vitaminas (raquitismo), doenças crônicas durante a fase de crescimento e, claro, doenças genéticas.
2. Quais os principais tipos de nanismo?
Entre as doenças genéticas que interferem no crescimento e desenvolvimento esquelético, existem mais de 400 tipos diferentes das chamadas displasias esqueléticas (nome genérico para doenças genéticas que afetam o crescimento dos ossos). A forma mais comum é a acondroplasia, que afeta 1 em cada 20 mil nascidos, respondendo por 90% dos casos de nanismo. Outra forma relativamente comum é a osteogênese imperfeita, afetando 1 em cada 20 mil a 50 mil nascidos, que apresentam graus variáveis de fragilidade óssea, fraturas recorrentes e deformidades ósseas.
3. Quais as características do nanismo?
A baixa estatura e as deformidades ósseas são as principais características. Alterações da coluna espinhal, como cifoescoliose de graus progressivos, levando a compressões de nervos e dificuldades respiratórias são comuns. Na vida adulta, ocorrem manifestações como artrose precoce, levando a necessidade de prótese de quadril e joelhos em idade precoce.
4. Quais problemas de saúde a pessoa com nanismo pode ter?
As deformidades de membros e coluna descritas acima são importantes e levam a limitações físicas que vão além da própria baixa estatura. Muitas pessoas com nanismo têm alterações articulares importantes, com dores crônicas, formigamento dos membros, que afetam a marcha, limitando de maneira significativa as atividades físicas.
A falta de atividade física apropriada aumenta as taxas de obesidade, hipertensão arterial e problemas cardiovasculares. As alterações "extra-esqueléticas" (não relacionadas aos ossos) também podem estar presentes em alguns tipos de nanismo. Os bebês acondroplásicos, por exemplo, têm risco maior de desenvolver hidrocefalia, compressões neurológicas na base do crânio, que podem levar a complicações neurológicas graves e precisam ser acompanhadas de perto pelo pediatra e geneticista.
Algumas formas de nanismo podem manifestar alterações oculares, como miopia alta, alterações de retina e cegueira. Até mesmo deficiência do sistema imunológico com infecções recorrentes pode ocorrer.
5. Como é feito o diagnóstico?
As crianças com suspeita de nanismo precisam ser avaliadas por um especialista, geralmente um médico geneticista, endocrinologista, ortopedista ou mesmo o próprio pediatra. A investigação envolve a análise do histórico médico da criança e da família, para identificar se existem outras pessoas com baixa estatura na família, e exame físico detalhado com medidas da altura e segmentos do corpo.
As radiografias para melhor visualização das alterações esqueléticas são fundamentais e, muitas vezes, acompanhadas do exame físico da criança, já são suficientes para chegar a um diagnóstico específico. Como os sinais e sintomas das mais de 400 formas diferentes de nanismo podem ser semelhantes, por vezes faz-se necessário realizar um teste genético para a identificação de uma mutação genética causadora do quadro de nanismo. Nesses casos, somente com o teste genético é possível descobrir o gene afetado e, consequentemente, fechar o diagnóstico do tipo de nanismo.
6. Há tratamento?
Os tratamentos disponíveis são para a maioria dos casos sintomáticos. Como ainda não há uma maneira de corrigir o erro genético (no âmbito de pesquisa, ainda básica, já existem técnicas para potencialmente corrigir mutações no código genético através de edição genômica, como o CRISPR-Cas9). Portanto, o tratamento atual envolve cirurgias ortopédicas recorrentes para correção das deformidades e o acompanhamento com outras especialidades médicas, quando necessário. Algumas medicações para melhorar o crescimento e minimizar as deformidades estão em fase final de estudos clínicos para algumas formas de nanismo, como a acondroplasia. Em breve, serão uma opção interessante para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.
7. Há dados de quantas pessoas com nanismo existem no Brasil e no mundo?
Considerando de maneira global, nascem por volta de 3 em cada 10 mil bebês com alguma forma de displasia esquelética (nanismo). Estima-se por volta de 250 mil acondroplásicos, que é a forma mais comum, no mundo todo.
8. É possível uma pessoa com nanismo ter uma vida normal?
Não é fácil viver com nanismo em um "mundo de gigantes", que não é adaptado às necessidades dessas pessoas. Não há escolas, transporte público, banheiros, caixas eletrônicos ou mesmo ruas totalmente adaptados. Os degraus são muito altos, as carteiras escolares não têm as proporções ergonômicas para pessoas com os membros mais curtos. Portanto, adaptações são necessárias desde a infância, na casa e na escola.
Os indivíduos com nanismo sempre foram retratados ao longo da história, seja em esculturas do antigo Egito ou em obras de pintores famosos, como Diego Velasquez (século 17). Na maioria das vezes, infelizmente, associado ao entretenimento e brincadeiras depreciativas. Nossa sociedade, ainda hoje, tem dificuldade em enxergar as pessoas com nanismo como demonstração da diversidade humana. Como indivíduos com limitações, mas também com habilidades e inteligência, capazes de superar obstáculos e de exercer, praticamente, qualquer atividade profissional, destacando-se em seu segmento. Observam-se algumas mudanças, mas o caminho é longo para a transformação desse estigma que as pessoas com nanismo ainda carregam.
Fonte: Wagner Baratela, geneticista do Departamento de Pediatria da Santa Casa de São Paulo e do Hospital Sírio-Libanês (SP) e coordenador da genômica do Fleury Medicina e Saúde.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.