"Não lembrava como cheguei até ali": dissociação provoca amnésia temporária
Resumo da notícia
- Dissociação é uma desconexão temporária de ações psíquicas ou motoras que são de controle voluntário ou do repertório comportamental do indivíduo
- O transtorno dissociativo requer diagnóstico e difere de episódios isolados de dissociação
- A avaliação do impacto do estado dissociativo no dia a dia da pessoa precisa ser profissional
- O estado de dissociação só ganha o diagnóstico de doença se a sua frequência gera sofrimento e disfuncionalidade na vida da pessoa
D.F tinha 19 anos quando decidiu ir de moto ao centro da cidade trocar uma peça de roupa. Enquanto dirigia até o local, começou a sentir que estava diferente, mas continuou o percurso. Estacionou, foi à loja fazer a troca do produto e, andando de volta até o veículo, esse sentimento ganhou proporções maiores: "Minha percepção era de que as pessoas ao redor me viam como um homem. Não me lembrava mais de ter dirigido e chegado ali, precisei ligar para minha mãe, que foi até onde eu estava e conseguiu me acalmar".
Ela conta que não conseguiu identificar o que houve, mas dividiu com o psiquiatra, que tratou o episódio como estado de dissociação. D.F já tinha o diagnóstico de transtorno borderline antes do que aconteceu, mas, desde então, passou a usar estabilizadores de humor, contribuindo para que a situação não se repetisse nos últimos 10 anos.
O que é a dissociação?
Por mais que a experiência pela qual D.F passou lembre muito a cena de um filme, tudo foi de verdade. A dissociação é uma desconexão temporária de ações psíquicas ou motoras que são de controle voluntário ou de acesso direto da consciência e do repertório comportamental do indivíduo. É um fenômeno da psicopatologia, a ciência responsável por estudar e descrever ocorrências psíquicas.
Apesar de assustador, nem sempre o fenômeno se apresenta como patológico. O estado de dissociação só ganha o diagnóstico de doença se gera sofrimento e disfuncionalidade. Caso contrário, ele pode ser apenas uma alteração qualitativa da consciência, ou seja, provocar a perda de parte da compreensão de espaço e tempo. Complicado? Um exemplo dessa dissociação não patológica seria estar conversando com alguém, mas, no segundo seguinte, esquecer-se da conversa e iniciar outra atividade. Isso é algo que, do ponto de vista externo, demonstra descontinuidade, perda inconsciente de um passado imediato.
Essa alteração qualitativa da consciência pode ser observada em graus, de modo que a mente faz recortes da realidade e escolhe o que lembrar ou não. De acordo com Nikolas Heine, psiquiatra pelo IPq HCFMUSP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e do Hospital 9 de Julho, em São Paulo (SP), essa capacidade de se dissociar pode ter uma função de defesa. Ao viver algo muito intenso, a pessoa se dissocia da realidade para conseguir administrar o que ocorreu. Neste caso, o exemplo pode ser alguém que acabou de sobreviver a um grave acidente, mas age como se ele não tivesse acontecido —tenta usar o telefone, pentear o cabelo, passar um batom, em total desconexão do momento.
Como sei que tive uma dissociação?
É possível que haja uma autopercepção do fenômeno quando ele acontece. Por outro lado, isso requer conhecimento do evento psíquico, o que significa saber que ele existe. No caso de D.F, não houve essa percepção instantânea, já que ela nunca tinha ouvido falar dessa possibilidade. Assim, o relato feito ao psiquiatra é que permitiu a identificação do estado dissociativo.
Segundo os especialistas, todos estão sujeitos a vivenciar episódios do tipo, mas ter uma rotina com picos de estresse e ansiedade pode ser um fator de risco. Juliana Gebrim, psicóloga clínica pela UnB (Universidade de Brasília) e neuropsicóloga pelo IPAF (Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal), entende que a pandemia do novo coronavírus resultou em crises de dissociação da realidade relacionadas ao medo da contaminação. "Funcionou como gatilho para aqueles que já sofriam com problemas emocionais. Ou seja, o medo e a ansiedade são capazes de impulsionar crises que desbloqueiam circuitos mentais e desencadeiam hábitos repetitivos".
É importante destacar que a avaliação do impacto dos episódios de dissociação no dia a dia da pessoa e de seu estado de consciência precisa ser profissional. Mas quem convive com ela também é capaz de observar o quanto a desorientação e a falta de identificação com a família, com o trabalho ou com o lugar em que se está é recorrente e preocupante, a fim de motivar a busca por um diagnóstico.
Tratamento
O tratamento é feito da combinação de remédios com a psicoterapia. No caso de D.F, já diagnosticada com borderline, a intervenção medicamentosa se adequou ao acompanhamento que ela já realizava com o médico. Segundo Heine, os remédios não têm a função de cura, mas de evitar comorbidades, como diminuir a ansiedade, aliviar sintomas de estresse e prevenir que haja abuso de substâncias ou vícios.
No caso do diagnóstico de transtorno dissociativo, que difere de episódios isolados de dissociação, o tratamento precisa acontecer com suporte da família e dos amigos. O psiquiatra e o psicoterapeuta ficam responsáveis por orientar essas pessoas sobre como diminuir a ocorrência e os efeitos da disfuncionalidade, que podem ser:
- Amnésia: falsa memória, dificuldade para se lembrar das coisas ou desorientação;
- Despersonalização: o indivíduo não se reconhece no próprio corpo e o vê de uma perspectiva externa;
- Confusão: não se tem compreensão total do que acontece ao redor;
- Alteração de identidade: ele acredita que é outra pessoa;
- Desrealização: sensação de estar fora da realidade, como se estivesse vivendo um sonho ou um jogo de vídeo game;
- Fuga: comportamento de andar a pé ou de carro sem qualquer racionalidade em relação ao destino ou motivação;
- Transe ou possessão: ignorar a comunicação com outras pessoas e agir como se estivesse sob possessão de algo.
Quadro neurológico ou dissociativo?
Diferentemente de tumores, aneurismas, acidentes vasculares isquêmicos ou hemorrágicos, inflamações e outras lesões cerebrais, o estado dissociativo (já diagnosticado como um transtorno ou episódio isolado) não se manifesta no cérebro. Isso quer dizer que os exames de imagens, que são as tomografias e as ressonâncias, podem ser realizados para eliminar dúvidas sobre condições neurológicas, mas não vão indicar qualquer alteração.
Segundo Alexandre Bossoni, neurologista pelo HCFMUSP e do Hospital Santa Paula, em São Paulo, existe a possibilidade de o quadro neurológico e o dissociativo aparecerem no mesmo paciente, sem que um esteja ligado ao outro. "É frequente que pessoas com epilepsia tenham crises não-epilépticas psicogênicas, que parecem crises convulsivas, mas têm origem psicológica. O paciente está na sua frente, você está presenciando a convulsão, mas os testes no cérebro não mostram nenhuma alteração".
Ele também alerta para a falsa ideia de que é preciso esperar um gatilho ou uma motivação para procurar ajuda profissional. "Existe muito preconceito em relação aos eventos psíquicos. É comum que as pessoas perguntem por que alguém está depressivo, quando o questionamento não faz nenhum sentido, pois é uma doença que não precisa obrigatoriamente de um motivo para acontecer".
Fontes: Bruno Gonzales Miniello, neurologista pelo Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo) e membro da Doctoralia; Marco Maximino, psicólogo e hipnoterapeuta membro da Doctoralia; Thiago Cabral Pereira, psiquiatra pelo Hospital Municipal Prefeito Edvaldo Orsi (SP), psiquiatra forense pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e membro da Doctoralia; Volnei Vinicius Ribeiro da Costa, psiquiatra membro do conselho científico da ABRATA (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos).
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