Por que ter planos regionais de vacinação é uma má ideia para o Brasil
A ausência de um plano nacional de imunização contra a covid-19 levou a uma corrida paralela de estados e municípios, que já planejam ações alternativas para vacinar suas populações.
Deixando de fora o debate político, uma análise do ponto de vista técnico mostra que a descentralização é uma má ideia, que pode trazer problemas dos pontos de vista epidemiológico, logístico e até de desigualdades sanitárias entre locais ricos e pobres.
Se adotar um modelo de imunização descentralizado para a covid-19, o Brasil o fará pela primeira vez desde 1973, quando foi criado o PNI (Programa Nacional de Imunizações). Graças a ele, o país tem um calendário de vacinação gratuito e que se tornou modelo internacional, erradicando doenças como a varíola e a poliomielite.
"Qualquer ruptura nesse sistema será muito ruim", avalia Renato Kfouri, ex-presidente e atual diretor da SBIM (Sociedade Brasileira de Imunizações). "Se um estado faz de um jeito; se usa uma vacina diferente de outro; se tem calendário diferenciado; isso cria enormes dificuldades em todos os sentidos", completa.
O primeiro ponto ressaltado por ele é que a universalidade estará em risco. "Se isso ocorrer, quantas pessoas vão viajar para locais que têm vacina? Se você disponibiliza para quem mora em um local, ou para quem tem condições de viajar, já cria uma desigualdade tremenda", diz.
Hoje, no PNI, apenas a operacionalização da armazenagem e da aplicação das doses competem a estados e municípios. "A definição de grupos etários, compra de vacinas, distribuição, definição de calendário, quem toma, quantas doses: isso sempre foi decidido pelo PNI. Nós vacinamos quase 80 milhões de pessoas todo ano contra gripe em três meses, temos um sistema eficiente", lembra Kfouri.
Por se tratar de uma pandemia, e pela escassez de imunizantes que deve ocorrer no mercado mundial, é provável que o Brasil compre não apenas um, mas mais tipos de vacina. Por si só, diz Kfouri, isso será um problema que precisará ser contornado com soluções ainda indefinidas —e se tornará ainda mais grave se não houver uma ação coordenada no país.
"A gente quer um número grande de vacinas, o maior possível; mas pulverizar isso em laboratórios diferentes cria dificuldades importantes. Uma solução pode ser regionalizar: a região Sul recebe uma vacina, o Norte recebe outra, por exemplo; pode ser também por grupos: profissionais de saúde recebem um tipo de vacina, os idosos outra. A gente pode discutir isso, mas tem de ser nacionalmente", explica.
Além disso, ele alega que essa quebra da nacionalização pode gerar uma dificuldade no eficiente controle nacional com registro de doses aplicadas.
"Cada ente [estadual ou municipal] vai ter que criar sistemas de informatização para registro de doses. Isso cria problemas para pessoas que tomaram uma dose de um laboratório no local onde moram, e na hora de tomar a segunda dose está em outro local. Não temos demonstração de segurança ou de eficácia nos esquemas com intercâmbio de diferentes vacinas, além de dificultar o monitoramento de efeitos colaterais, saber se ela não funcionou", afirma.
E como ficam os estados mais pobres?
Na terça-feira passada (8), uma reunião em Brasília entre o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, e governadores e secretários de Saúde não chegou a um acordo e ainda marcou uma discussão entre o titular da pasta e o governador João Doria (PSDB), de São Paulo.
O pivô do debate é a CoronaVac, vacina que está em fase 3 de testes no Instituto Butantan (pertencente ao governo paulista). São Paulo, por sinal, anunciou um plano de imunização antes mesmo da liberação —ou garantia disso— da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Pazuello afirmou após o encontro que estados e municípios não podem ter planos de vacinação paralelos, e a imunização será coordenada pelo governo federal.
Entretanto, o tema parece longe de definição. No mesmo dia do encontro em Brasília, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), informou que entrou com pedido no STF (Supremo Tribunal Federal) para que os estados possam adquirir vacinas diretamente com entes internacionais. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), alegou que, se a Anvisa demorar no registro, também irá ao STF.
Com a incerteza, o Butantan tem vivido uma busca de estados e prefeituras que tentam garantir um lugar na fila de espera. E não são apenas governadores, mas também prefeitos.
Foi o caso, por exemplo, do prefeito de Pilar (AL), Renato Filho, que foi até São Paulo na segunda-feira (7) assinar acordo com o instituto e garantir a compra da CoronaVac, caso o Ministério da Saúde não adquira a vacina. "Esperamos a sensibilidade do governo federal, mas caso não, estamos com nosso lugar na fila", diz.
Procurado por VivaBem, o Butantan informou que ainda não tem um número de prefeituras e estados que buscaram adquirir diretamente a vacina. Na quinta-feira passada (10), Doria disse que 11 estados já anunciaram interesse nas 4 milhões de doses oferecidas por São Paulo: Acre, Pará, Maranhão, Roraima, Piauí, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Sul.
Para Natália Pasternak, microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, a descentralização deve trazer desvantagem aos entes federativos mais pobres. "Se isso acontecer de forma individualizada, com estratégias diferentes, alguns estados mais ricos podem conseguir melhores acordos e comprar mais doses de vacina; e assim, efetivamente, vacinar a sua população, enquanto os mais pobres ficam a ver navios", diz.
Outro reflexo de uma hipotética ação descentralizada é que apenas uma parte do país teria controle da doença, mas com uma circulação livre de pessoas.
"A gente pode acabar formando bolsões de contaminação —onde o vírus ainda circula— e que vão manter a doença ativa, circulando. Ora, as pessoas circulam livremente pelo Brasil, sem nenhum tipo de barreira entre os estados. Então, você não consegue fazer com que a doença deixe de circular no país sem ter uma ação coordenada", pontua Pasternak, citando ainda o fator econômico.
"Certamente uma ação coordenada pelo governo federal tem muito mais poder de barganha para negociar preço de vacinas com as multinacionais do que um ou outro estado de maneira isolada. Os estados serão prejudicados pagando um preço maior com esses acordos independentes", completa.
Pós-vacina precisa de coordenação
Melissa Palmieri, diretora da regional São Paulo da SBIM, afirma ainda que, dentro de um plano de vacinação, existe um ponto importante, especialmente para uma vacina feita a toque de caixa: avaliar o momento pós-vacinação.
"A farmacovigilância, estudos de monitoramento pós-realização da vacinação em massa, devem continuar. Aí vamos ter o monitoramento dos vacinados, a supervisão e avaliação desses resultados, a comunicação e o encerramento da campanha. Se você compartimentaliza isso, temos um grande prejuízo. Um estado como São Paulo tem capacidade técnico-operacional para fazer [uma campanha], mas outros estados não têm", explica.
Um outro ponto que ela alerta é sobre a armazenagem e estocagem dos produtos (que podem variar de temperatura em relação aos imunizantes já usados). A depender da época do ano, será preciso debater como ocorreria uma vacinação da covid-19 de forma concomitante à da gripe.
"Serão inúmeros brasileiros necessitando serem imunizados, e as vacinas terão que ser acondicionadas. Já existe uma complexidade com relação à campanha de gripe, e adicionalmente terá a vacinação para covid. Além de armazenagem, nós teremos de espaçar essas doses; elas não poderão ser feitas concomitantemente porque não existem estudos [que garantam a segurança de vacinar as duas ao mesmo tempo]", pontua.
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