Câncer de reto: chance de recorrência é menor após 3 anos sem tumores
Certa vez, em 1991, após operar uma paciente diagnosticada com câncer de reto para a remoção da parte final do órgão, inclusive o ânus, procedimento que obriga a criação de uma saída das fezes por uma bolsa coletora no abdome (colostomia), a cirurgiã Angelita Habr-Gama, do Instituto Angelita e Joaquim Gama, em São Paulo, notou que a parte retirada não continha mais nenhum vestígio do tumor.
Ao contar o resultado para a paciente e informá-la de que estaria curada, foi questionada: "Se não havia mais tumor, por que a senhora me operou?". "Expliquei que, até então, aquela era a norma", recorda-se Angelita. "A partir de então, passei a não operar mais, de imediato, os pacientes que não apresentassem mais tumor após terem realizado rádio e quimioterapia. Fui chamada de arrojada", conta.
A proposta ousada sofreu duras críticas antes de passar a ser considerada no meio médico. Agora, um estudo internacional publicado em 11 de dezembro de 2020 na revista científica The Lancet Oncology, que contou com a participação de Angelita, fornece mais evidência a favor dessa abordagem depois de analisar o histórico de 793 pacientes tratados em 15 países e não submetidos à cirurgia de imediato. Os resultados sugerem que aqueles que não manifestaram reincidência do câncer nos três primeiros anos após o diagnóstico tinham menos de 5% de risco de que o tumor voltasse a crescer e apenas 2% de ocorrer metástase.
Os pesquisadores analisaram uma base de dados de 47 centros de saúde de pacientes tratados entre novembro de 1991 e dezembro de 2015. Os dados foram coletados na International Watch & Wait Database (IWWD), plataforma na qual estão armazenadas informações de pacientes submetidos à estratégia de tratamento criada e batizada por Angelita de Watch & Wait ("Observar & Esperar").
Nela, a intervenção cirúrgica radical não é feita de forma imediata se o paciente apresentar a chamada resposta clínica completa, a regressão total do tumor com rádio e quimioterapia. Se essa situação é verificada, ele é acompanhado pelo médico de forma intensa, com exames de toque, retoscopia e ressonância magnética e endoscopia realizados em intervalos de dois a três meses durante o primeiro ano de acompanhamento. Caso o tumor volte a crescer, a indicação cirúrgica entra em pauta.
O destaque do novo artigo é a análise da chamada sobrevivência condicional, na qual os pesquisadores observaram a chance de o paciente continuar livre da doença para cada ano em que o tumor não voltou a crescer. Após 12 meses, a probabilidade de o tumor não reaparecer nos dois anos subsequentes é de 88%. Depois de três anos, a chance de se manter por mais dois anos sem a doença é de 97%. Ao completar cinco anos livre de câncer, o risco de o tumor reaparecer é de apenas 1%.
"A cada ano sem manifestação de recidiva da doença, as estatísticas de sobrevivência aumentam. Isso é importante, porque, geralmente, fazemos um acompanhamento intensivo, com muitos exames,preocupados que a doença retorne. No entanto, as conclusões desse trabalho indicam que, a partir do momento em que a pessoa passa três anos sem o tumor, o risco de que a doença volte é mínimo", avalia o cirurgião Rodrigo Oliva Perez, também do Instituto Angelita e Joaquim Gama e autor principal do artigo. "Manter o reto sem sinal de câncer acaba sendo o fator mais determinante para diminuir o risco de reincidência da doença."
A segunda conclusão importante do estudo, destaca Perez, trata do grau de desenvolvimento do tumor primário diagnosticado e o risco de que ele retorne com o passar do tempo, quando adotado o protocolo não cirúrgico. Dependendo do nível de invasão na parede do reto, o tumor é classificado em estágios que vão do T1 (mais superficial) ao T4 (mais avançado), um ranqueamento que os oncologistas denominam estadiamento. "Após o primeiro ano sem que o tumor volte a crescer, as chances de recidiva praticamente se igualam e deixam de ser tão relevantes, independentemente da dose de rádio e quimioterapia recebida ou do estadiamento inicial", explica o cirurgião.
Angelita já suspeitava que cada ano do paciente sob Watch & Wait teria um papel crucial em sua resposta ao tratamento. "Acompanhando meus pacientes, percebi que as recidivas eram maiores no primeiro ano. Esta pesquisa, agora, reforça e dá números a essa observação clínica", avalia. Para o cirurgião oncologista Samuel Aguiar Júnior, chefe do Núcleo de Tumores Colorretais do A.C.Camargo Cancer Center, de São Paulo, que não participou do estudo, o principal impacto dos resultados do trabalho recai sobre as recomendações de acompanhamento do paciente a partir da decisão não cirúrgica.
"Ao demonstrar que o risco de recidiva do tumor cai drasticamente após três anos, o artigo avaliza a ideia de que, passado esse período, o acompanhamento do paciente, por meio de exames de imagem e de consultas periódicas, pode ser menos intenso. Isso é muito relevante, pois ainda não há consenso sobre com que periodicidade e por quanto tempo se deve seguir mais de perto esses pacientes", explica Aguiar Júnior.
Qualidade de vida
Para Angelita, a qualidade de vida do paciente que teve câncer de reto, com a possibilidade de preservação do órgão, deve ser levada em consideração sempre que possível. Hoje, mais de 30% dos pacientes com esse tipo de tumor apresentam resposta clínica completa à radioquimioterapia. As operações radicais podem acarretar problemas de incontinência fecal e de ordem sexual, além da realização de colostomia temporária ou definitiva. "Dados já consolidados em outros estudos mostram que, em pacientes não operados, o risco de ocorrer metástase é de 10% no primeiro ano.
Nos pacientes que sofrem a operação radical, esse índice é igual para o mesmo período. Então, por que não tentar preservar o órgão?", reflete a cirurgiã de 87 anos, que em maio se curou da Covid-19 depois de 40 dias internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 298). De volta ao trabalho, além da dedicação aos pacientes, Angelita prepara um levantamento sobre pacientes submetidos a Watch & Wait na América Latina para a criação de uma base de dados regional.
Apesar das críticas que recebeu no passado, a opção de não necessariamente operar de imediato após a resposta clinica completa do paciente, começa a ter uma melhor recepção entre especialistas. "Os dados atuais disponíveis já são maduros o suficiente para colocar a Watch & Wait como uma das modalidades de primeira linha de tratamento desse tipo de câncer, particularmente para os pacientes em que a amputação do reto seria indicada", avalia Aguiar Júnior.
No entanto, ele ressalta que a maioria dos pacientes com câncer de reto, em torno de 70% a 75%, não tem resposta clínica completa após a rádio e quimioterapia e precisa da cirurgia para aumentar as possibilidades de cura. "Por esse motivo, é importante determinar com precisão se houve uma resposta clínica completa somente com a rádio e quimioterapia.
Optar pela estratégia não cirúrgica exige discussões multidisciplinares e compartilhamento das informações e da decisão com o paciente", conclui.
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