Ela engravidou do marido 10 anos após ele morrer: 'Me tornei mãe de anjo'
Samille Simões Landim, 33, engravidou duas vezes do marido, Cleberton. Uma com ele vivo, e outra após a morte dele por meio da reprodução assistida. Vítima de um câncer no cérebro, Cleberton morreu quando a esposa estava grávida de três meses de Pietro. O segundo filho, Enrico, que nasceria em fevereiro, dez anos após a morte do pai, nasceu prematuro em dezembro de 2020 e morreu. Conheça a história do casal:
"Eu e o Cleberton nos conhecemos quando eu tinha 10 anos, e ele 19. Me apaixonei à primeira vista, mas ele não me deu bola. Aos 12, roubei um beijo dele, foi o meu primeiro beijo. Ficamos alguns anos sem nos vermos até que um dia nos reencontramos em uma festa quando eu tinha 16 anos. Começamos a namorar e três anos e meio depois, em 2008, nos casamos.
O sonho do Cleberton era ser pai, ter uma família grande, nós queríamos, no mínimo, ter três filhos. Tentamos engravidar já no primeiro ano de casamento, mas não conseguimos. Procuramos ajuda médica, fizemos exames e nada foi constatado, entramos em um quadro de esterilidade sem causa aparente.
Passamos com um especialista em reprodução assistida, fizemos alguns tratamentos, entre eles, três tentativas de inseminação intrauterinas, mas nenhuma deu certo. Ficávamos na expectativa, mas todo mês era uma frustração.
Em agosto de 2010, fizemos uma tentativa de fertilização in vitro e funcionou. Implantamos três embriões e congelamos três. Uma semana depois do procedimento, um dia antes de eu fazer o teste de gravidez, sofremos um acidente de carro e eu perdi os embriões. Ficamos muito abalados.
Nessa época, meus pais vieram nos visitar em Minas Gerais —onde morávamos— e nos fizeram uma proposta de mudar para o Rio de Janeiro e abrir uma creche. Trabalharia junto com a minha mãe, e o Cleberton na empresa do meu pai. A previsão era inaugurar a creche em fevereiro de 2011.
Aceitamos a oferta e decidimos que não iríamos mais fazer nenhum procedimento para tentar engravidar, para poder focar no projeto da mudança e da escolinha. Dois meses depois de ter perdido os embriões, engravidei naturalmente sem saber e só fui descobrir durante uma internação do meu marido.
Não contei para o meu marido que ele tinha câncer no cérebro
No dia 25 de dezembro, estávamos celebrando o Natal quando o Cleberton começou a passar mal, a ter espasmos musculares nos braços, nas pernas, e fortes dores de cabeça. Fomos ao hospital, o médico disse que era estresse, deu medicação e nos mandou de volta para casa.
Ele só piorou. No dia 27 fomos em outro hospital, ele foi submetido alguns exames, mas os resultados só ficaram prontos no dia seguinte. No dia 28, o médico me chamou em particular, me mostrou a ressonância magnética e disse que meu marido tinha um tumor cerebral maligno e que já era para ele estar morto.
Ele me aconselhou a aproveitar cada segundo ao lado do dele e não revelar o diagnóstico porque isso iria gerar nervosismo, preocupação e poderia acelerar a morte.
Meu mundo desabou. Eu e meu marido nos amávamos muito, não podia imaginar minha vida sem ele. Por não querer acreditar no diagnóstico e para evitar o sofrimento dele, não contei a ele o que ele tinha, ele morreu sem saber.
O câncer no cérebro do Cleberton foi fatal, entre passar mal e falecer foram pouco mais de 50 dias.
Meu marido me perguntou o que o médico havia dito, respondi que ele ainda não sabia qual doença ele tinha, disse que ele precisaria ficar internado para ser feita uma investigação, ele acreditou.
Durante os 15 dias em que ficou internado, o Cleberton disse que nós precisávamos dar continuidade no nosso sonho de sermos pais. Ele me disse: 'Amor, nós precisamos voltar na clínica para implantarem os três embriões que estão congelados'. Acho que, de alguma forma, ele sentia que algo de ruim fosse acontecer com ele. Nós chegamos a pedir alta para o médico para fazer o procedimento, mas ele não deu.
Nesse período, comecei a passar mal, ter enjoos, tontura e cólicas. Fiz um teste de gravidez e deu positivo: 'Estou grávida e meu marido vai morrer, e agora?'. Fui do céu ao inferno em um segundo.
Voltei para o quarto e contei a novidade para o Cleberton, ele ficou muito feliz. Quando o médico soube da notícia, deu alta para ele.
Buscamos a opinião de um segundo profissional, ele pediu alguns exames, mas não deu tempo de o Cleberton fazer. Descobri a gravidez no dia 6 de janeiro de 2011, ele entrou em coma no dia 6 de fevereiro e morreu no dia 13. Nesse um mês de vida, ele ficou super bem, nós passeamos, escolhemos os nomes juntos —Pietro ou Pietra—, convidamos os padrinhos, compramos algumas roupinhas.
Um dia antes de eu fazer o primeiro ultrassom, o Cleberton passou muito mal. Nós estávamos em casa, ele abraçado a minha barriga disse: 'Amor, será um menino, ele vai ser seu amigo, companheiro e vai cuidar de você. Você é forte, confio que você vai dar conta de tudo sozinha. Amo vocês e tenho certeza que vocês serão muito felizes juntos'.
Antes de morrer, meu marido pediu para eu implantar os embriões
Depois de falar isso, ele me fez um último pedido: 'Você me promete que depois de um tempo que o Pietro nascer, você vai voltar na clínica e implantar os três embriões congelados? Você não pode esquecer dos nossos outros filhos, a nossa história não termina aqui'. Chorei e prometi o que ele me pediu.
Nesse mesmo dia ele teve uma convulsão, nós fomos para o hospital, ele sofreu três paradas cardiorrespiratórias e entrou em coma. Uma semana depois, ele morreu, aos 32 anos de idade.
No enterro, coloquei um sapatinho do Pietro com ele e guardei o outro. Nosso filho nasceu no dia 15 de agosto de 2011. Ele é muito parecido com o pai fisicamente e na personalidade, é uma parte do Cleberton que ficou para mim.
Após a morte do meu marido, tive alguns relacionamentos, mas nenhum deles foi para frente, pois sempre deixei claro que tinha três embriões congelados e que, em algum momento, iria implantá-los. Essa era uma situação que nenhum homem aceitava, feria a masculinidade deles, eles se sentiam inseguros e menos amados.
Teve um ex-namorado que me perguntou: 'Você quer ter filho de um morto?' A gente tinha brigas horríveis por causa disso. Teve outro que chegou a me pedir em casamento, pediu para eu não implantar os embriões, para termos um filho nosso, mas não aceitei.
Não abriria mão da promessa que tinha feito ao meu marido, ainda que isso me custasse nunca mais me casar novamente. Minha prioridade era fazer a reprodução assistida pós-morte e ter os bebês.
Em 2018, dei entrada no processo junto à clínica para fazer o procedimento, mas o Conselho Regional de Medicina negou o pedido, pois o Cleberton não havia assinado o termo de consentimento que autorizava a utilização do material genético em caso de morte, só havia a minha assinatura.
Havia um outro campo em que nós deveríamos ter especificado e detalhado o que deveria ser feito com os embriões em caso de morte de uma ou das duas partes. Nós não preenchemos esse campo porque passou batido e porque a clínica não nos orientou bem. Foi uma falha deles não terem checado tudo e pedido para preenchermos toda a papelada.
Contratei um advogado e entrei com uma ação contra a clínica, em abril de 2019, reivindicando o direito de implantar os três embriões. Eles alegavam que não poderiam fazer o procedimento diante da negativa do CRM.
Como não há lei em relação à reprodução assistida pós-morte, um juiz iria julgar o caso de acordo com o entendimento e os princípios dele. Nessa época, o Pietro que tinha sete anos gravou um vídeo que circulou nas redes sociais. No vídeo, ele aparecia perguntando quem era o CRM para negar o direito dele de ter um irmão. 'Tudo o que é do meu pai é meu também, eu posso liberar para ter um irmão'.
Em dezembro do mesmo ano, tivemos uma audiência de conciliação, e o juiz decidiu a meu favor. Além do meu depoimento, reunimos declarações de amigos próximos, como testemunhas, para provar que o desejo do Cleberton era que eu implantasse os embriões.
No acordo, mesmo tendo gastado R$ 30 mil com a ação judicial, abri mão de solicitar qualquer indenização contra a clínica em troca deles fazerem o procedimento com o aval do juiz.
Da parte da família do meu marido, não houve nenhuma objeção. Ao explicar o trâmite para os meus sogros, que já são bem idosos, eles não entenderam muito bem: 'Meu filho já morreu, como ele vai ter outro filho?'.
Dos três embriões, fiz a implantação de dois, um não se desenvolveu no processo de descongelamento. Fiquei bastante emocionada com tudo, passou um filme na minha cabeça.
Fechei os olhos e mentalizei que meu marido estava ao meu lado, senti a presença dele. Cinco dias depois fiz o teste de gravidez e deu positivo.
A minha decisão gerou bastante repercussão entre as pessoas. Souberam da minha história e fizeram uma enquete em um programa de rádio perguntando se o que tinha feito era certo ou errado. Teve gente que me chamou de louca de ter mais um filho e ser mãe solo, outros disseram que eu queria me aparecer, ganhar pensão e herança para mais um filho. Outras manifestaram admiração dizendo que eu era uma mulher iluminada, guerreira e esposa dedicada.
Com seis semanas de gestação, sofri um aborto espontâneo e perdi um dos bebês. Sempre tive a certeza de que um daria certo.
A previsão era que Enrico nascesse em 13 de fevereiro de 2021, data em que completa dez anos de morte do meu marido. No entanto, no dia 3 de dezembro de 2020, minha bolsa rompeu e Enrico nasceu em um parto prematuro, com 27 semanas e 5 dias de gestação, pesando 885 g e medindo 36 cm.
Na UTI, ele lutou bravamente, foi um guerreiro, mas não resistiu e morreu no dia 15 de dezembro. Agora, ele está junto ao pai e nos cabe seguir com a certeza de que Deus é por nós. Tenho muito orgulho de ser mãe do Enrico, me tornei mãe de um anjo."
Entenda a reprodução assistida que acontece após a morte
1) O que é e como funciona a reprodução assistida post mortem?
Nos últimos anos, a área de reprodução assistida ganhou novos desdobramentos e possibilidades. Em consequência disso, surgiu a reprodução assistida post mortem, que garante a concepção a partir do gameta de um indivíduo após a morte.
Ela costuma acontecer com casais que buscam a reprodução assistida, mas não conseguem efetivar o tratamento em razão da morte de um dos cônjuges. Para essa situação, temos duas possibilidades: a primeira acontece quando já há um embrião formado por meio do espermatozoide do marido e o óvulo da esposa. Ou seja, nos casos em que o casal já tem um embrião formado como fruto do consentimento dos dois. A segunda, ocorre quando o marido congela seu sêmen ou a esposa o seu óvulo e, após o falecimento de um deles, o indivíduo deseja engravidar usando esse material genético.
Uma situação possível, por exemplo, acontece quando a esposa descobre um câncer e congela seus óvulos a fim de preservar a sua fertilidade para engravidar após o tratamento. Se ela morrer, o marido poderá usar o material genético para ter um filho deles por meio de um útero por substituição —não temos barriga de aluguel no Brasil. Vale ressaltar, no entanto, que essa permissão da mulher é unicamente para que o seu marido utilize o seu óvulo com o espermatozoide dele.
O contrário também pode acontecer, quando o homem tem algum tipo de câncer e morre antes de utilizar o material congelado e sua esposa quer fecundar os seus óvulos com o sêmen do marido para engravidar dele. Esse é um dos casos mais frequentes nos consultórios em relação à reprodução assistida post mortem pelo fato de o câncer ser uma doença em que é possível prever o prognóstico e a evolução do paciente. Nos outros tipos de morte, como morte cerebral ou por acidente, fica mais difícil de resolver se o indivíduo não tiver deixado uma autorização por escrito.
2) Existe alguma lei que dispõe sobre a reprodução assistida post mortem?
No Brasil, a legislação é omissa no que se refere à reprodução assistida. Por esse motivo, essas questões têm sido abordadas com base na resolução 2168/2017 do CFM (Conselho Federal de Medicina). O texto estabelece que "é permitida a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do (a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente". Ou seja, diante do consentimento informado do casal, a pessoa poderá utilizar o óvulo ou o sêmen em qualquer procedimento após a sua morte.
Sendo assim, quando um dos cônjuges está na luta contra algum tipo de doença e teme morrer durante o tratamento, ele pode congelar seu material genético e autorizar por escrito o seu parceiro ou parceira a utilizá-lo mesmo após a sua morte. Existe no consentimento informado um item específico para essa finalidade que deve ser preenchido pelos dois.
Da mesma forma, quando casais resolvem fazer o tratamento de reprodução assistida, eles também podem informar por escrito que, caso aconteça alguma coisa com um deles, seu parceiro poderá utilizar o sêmen ou óvulo com útero de substituição ou por meio de sua própria gestação.
3) O que acontece se o termo de consentimento não estiver assinado pelos envolvidos?
Existe a possibilidade de uma autorização prévia do casal, mas muitas vezes ocorre um questionamento familiar. A família da pessoa pode não querer que o indivíduo (marido ou esposa) fique preso a alguém que já morreu. Todavia, quando o consentimento de ambas as partes já foi feito enquanto estavam vivos, dificilmente o CRM vai contrariar a vontade das partes.
Por outro lado, quando não há essa autorização prévia, o CRM, geralmente, se baseia na resolução (2168/2017) do CFM em seus pareceres e pode negar o pedido. Portanto, pode ocorrer a judicialização desses casos, a parte que se sentir prejudicada pode procurar um advogado para defender seus interesses.
4) Qual a importância da reprodução assistida post mortem para a formação de novas famílias?
O serviço de reprodução assistida procurado pela pessoa vai avaliar os direitos do bebê que vai nascer. Nesses casos serão avaliados o perfil psicológico, os interesses e os valores do bebê, ansiedades e preocupações.
Os profissionais são muito cuidadosos para que a criança não nasça com a sobrecarga de substituir a pessoa que morreu. A equipe também observa e contextualiza o cenário do nascimento do bebê, que vai nascer em uma família formada apenas por um pai ou mãe solteiros que vão criá-lo sozinho, por exemplo.
Além disso, também são analisados os direitos da pessoa que deseja se submeter ao tratamento de reprodução assistida e os objetivos dela com essa nova gestação que usará material genético do companheiro ou companheira já morto(a) (tristeza, pesar, dor, promessa de levar o sonho do casal adiante), questões legais, entre outros pontos.
Por fim, olhando para o lado da pessoa que fica será uma nova oportunidade de seguir em frente e ter uma perspectiva para o viver —podendo até significar a cura de uma depressão, de um trauma—, por estar realizando o sonho do casal que não pôde ser realizado juntos.
Fontes: Rodolfo de Castro Salvato, especialista em ginecologia e reprodução assistida, pós-graduado em reprodução humana e cirurgia minimamente invasiva pelo Hospital Sírio-Libanês e membro das Sociedades Europeia e Americana de Reprodução Humana; e Hitomi Nakagawa, presidente da SBRA (Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida) e membro da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do Conselho Federal de Medicina.
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