Terraplanistas, antivacinas: o que está por trás do negacionismo
Resumo da notícia
- O negacionismo é uma tendência em larga escala, um movimento político que visa a negação tanto de fatos históricos quanto de evidências científicas
- Tem como objetivo produzir nas pessoas uma espécie de ignorância, em uma situação social que inspira cuidado, tratamento e combate
- A insistência na negação como único mecanismo de defesa diante de um sofrimento intenso implica em vulnerabilidade psíquica que demanda acompanhamento
Afirmar que não, recusar a admitir ou a aceitar, contestar, repudiar, negar. São mecanismos comuns a todos, considerados inclusive como forma de defesa, muitas vezes inconsciente. Mas desde quando refutar um fato se tornou perigoso?
Existem algumas explicações para tentar justificar esse comportamento de "ser do contra". Freud, por exemplo, defendia que era uma reação do "eu" diante de conteúdos que ameaçam a estabilidade da própria consciência. Também pode ser visto como um meio de escapar da realidade, por causa de sentimentos como medo e intimidação.
Tudo isso faz parte da negação, um conceito que trata sobre a atitude de reprimir aquilo que incomoda ou causa desconforto, normalmente por ser motivo de reprovação ou discriminação entre certos grupos sociais. Seria um jeito de "ganhar tempo" para enfrentar a impotência diante dessas sensações ruins, que, enquanto são negadas, também são sentidas.
Mas existe uma tendência em larga escala que se vale de métodos retóricos e argumentativos para negar eventos históricos e evidências científicas. Com objetivo de criar tumulto e invalidar esses acontecimentos, estimula uma espécie de ignorância, que atende aos interesses daqueles que sustentam esse discurso. Nada mais é do que o negacionismo, disseminado para anular evidências já comprovadas (por vezes há mais de séculos), e que interfere nas crenças e nas formas de poder de quem as rejeitam.
Seja por ingenuidade, por ignorância ou maldade, é uma situação social danosa, que além de cuidado e tratamento, exige também combate.
A dificuldade em ter pensamentos racionais
Pessoas e sociedades cultivam opiniões, hábitos e costumes que são compartilhados. Podem envolver práticas esportivas, culinárias, políticas, músicas ou religiões que são características daquele ambiente e daquela organização social e fazem parte do imaginário coletivo, bem como da identidade individual.
São elementos que nos apegamos afetivamente ao longo da nossa formação e que incluem também noções acerca do que é bem-visto ou aceitável pelos outros e, em consequência, por nós mesmos. Por mais que existam informações e processos que comprovem o prejuízo causado com essas ideias e posturas, é mais confortável ficar do lado das explicações que ouvimos desde cedo.
Para sair dessa lógica emotiva, é preciso treinar a mente para se tornar racional, uma tarefa difícil para os seres humanos. Uma prova disso é quando há um choque emocional ao entrar em contato com evidências que contradizem suas crenças. Ao invés de repensar essas noções, o indivíduo segue o chamado viés confirmatório, de sustentar as posições já existentes e ignorar as comprovações apresentadas.
Isso acontece principalmente com concepções profundamente arraigadas, normalmente construídas desde criança e que ganham caráter afetivo e emocional na mente. Desprezar ou não perceber as evidências de forma consciente é um comportamento bastante comum entre os negacionistas.
As diferentes razões que nos levam a negar
Todo fato é dado pelo empirismo e existe concretamente, independentemente da nossa vontade. A Terra é redonda, o aquecimento global acontece e as vacinas funcionam, mesmo que algumas pessoas insistam em desconsiderar todos os indicativos científicos e históricos que provam esses eventos. São muitas as variáveis envolvidas nessas atitudes, a começar pela ingenuidade e pela dificuldade em desapegar de noções já acomodadas internamente. Se determinada ideia é confortável e justifica certos discursos ao confirmar o senso comum, esse indivíduo evita qualquer tipo de confrontação e se nega a acreditar em outras coisas.
A negação consistentemente sustentada pode ser também por ignorância, devido ao desconhecimento dos elementos envolvidos, o que leva a uma reação de recusa em admitir que não se sabe ou não entende de determinado assunto. Ainda há a possibilidade de essa postura ser por maldade, quando não se deseja concordar com pessoas ou grupos que se repudia, nem assumir que passou durante muito tempo acreditando numa mentira. Então, mesmo que haja condições de superar a ingenuidade, a ignorância, a pessoa prefere negar a evidência concreta.
De alguma forma, todos esses comportamentos são um jeito de manter a segurança pessoal e podem evoluir em tentativas de influenciar os outros para manter uma situação mais confortável frente a ameaças de ruptura ou mudanças. A insistência na negação como único modo de resguardo diante de um sofrimento intenso implica em vulnerabilidade psíquica e é uma situação clínica que inspira cuidado e tratamento.
Mas além do fator protetor, vale destacar que os mecanismos de defesa podem ter um caráter de perigo quando não se enxerga a realidade dos fatos. Sobretudo quando configura um movimento que ganha dimensões públicas, atingindo de modo perverso e manipulador pessoas mais vulneráveis (do ponto de vista psíquico e social), colocando-as em risco, sem que elas percebam que estão sendo enganadas.
Os males decorrentes do negacionismo
Frente ao choque de uma realidade que o indivíduo não consegue dar conta, é natural que ocorram reações de negação para se adaptar, reestruturar e sobreviver emocionalmente a essa condição estranha, normalmente provocada por conteúdos que causam aversão. O ser humano constrói histórias o tempo todo e está sempre em busca de explicações para dar sentido à própria vivência. Por esse motivo é comum preferir discursos que oferecem conforto e reforçam a construção de mundo que não interfere em suas limitações em relação a preconceitos e desconhecimentos.
O problema é quando mentiras passam a ser usadas como argumentos válidos e colocam a vida de muitas pessoas em risco, a partir de teorias que desconsideram a gravidade de doenças, menosprezam a necessidade de medidas preventivas ou invalidam os recursos de proteção já existentes. O mesmo vale para teses que distorcem as origens das opressões ou que ignoram as desigualdades sociais, que resultam em violências físicas e emocionais contra certos grupos.
Essa corrente de enganação e negacionismo é danosa e deve ser combatida. Trata-se de um processo socialmente induzido, que visa a promoção deliberada da ignorância ou da incerteza na opinião pública acerca de determinado tópico, para favorecer os interesses daqueles que o disseminam. Inclusive é estudado pela chamada Agnotologia, área que analisa os fenômenos de produção política e cultural da desinformação.
Há ainda aqueles que são enganados e se encarregam de compartilhar o discurso negacionista, como forma de convencer a si mesmo e aos outros sobre coisas que desconhecem. Ao invés de uma reação humilde em assumir o desamparo que sentem pelas incertezas que os afligem, tratam o tema com arrogância e pedantismo, a ponto de negar evidências científicas. Isso praticamente impossibilita o diálogo e dificulta a ampliação e a diversificação do pensamento.
Por isso é fundamental estimular a reflexão e oferecer meios para a população desenvolver senso crítico. Ter contato com experiências, com a pluralidade de vieses, com a dúvida, a descoberta e a conclusão. Nisso tudo a representatividade importa e contribui bastante para não ficarmos restritos a apenas um ponto de vista. Consiste na convivência, na assimilação e no entendimento que existem diferentes realidades sociais, históricas e culturais. Para assim sermos capazes de analisar as informações e identificar quando se tratam de fatos ou fakes.
Fontes: Alberto Filgueiras, psicólogo e professor do Departamento de Cognição e Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro); Claudio Paixão, psicólogo e professor do Departamento de Teoria e Gestão da Informação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais); Maria Julia Kovács, professora livre docente sênior do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) e membro fundador do LEM (Laboratório de Estudos Sobre a Morte); Maria Lívia Tourinho Moretto, professora titular do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do IPUSP.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.