"Alcoolismo destruiu minha infância": a vida de quem convive com alcoólatra
Leidivânia Duarte, 28, de Paragominas (PA), não teve infância. Ainda criança, ela e os dois irmãos tiveram que lidar com o alcoolismo da mãe. Em casa faltava comida, roupas, afeto e a garota ia atrás da mãe nos bares, implorando para que voltasse para o lar.
Hoje, casada, Leidivânia se considera uma vencedora por ter superado todas as dificuldades da vida. Sua mãe está sóbria há cinco meses, se será para sempre, ela não sabe, e como diz um dos lemas do Alcoólicos Anônimos, prefere viver um dia de cada vez. Leia o relato da paraense
"A primeira vez que eu vi minha mãe bêbada eu tinha 5 anos. Ela começou bebendo cerveja e depois foi para cachaça. Ela saia para beber nos bares e às vezes as pessoas batiam nela, uma vez quebraram o braço dela, outra vez a perna, machucaram a cabeça, ela tem muitas marcas no corpo, porque, quando bêbadas, as pessoas acabam discutindo e terminam nisso.
Ela não me levava para os bares, eu que ia atrás dela. Tinha medo dela morrer, medo dos homens fazerem algo com ela, às vezes eu ficava até de madrugada, só indo embora quando ela decidia ir para casa. Meus irmãos choravam muito, ela ficava muito agressiva quando estava alcoolizada. Eu me lembro que uma vez minha irmã estava doente e mesmo assim ela saiu, parecia que não se importava em nos deixar sozinhos em casa.
Minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha 3 anos e do meu padrasto quando eu tinha uns 10 anos. Este último ainda a perdoou várias vezes, gostava muito da gente, mas não deu certo, ela não quis mudar e ele foi embora, deixando a casa para nós. A rua na época não tinha asfalto, íamos para a escola com sacolas no pé quando chovia.
Nós éramos pequenos e começamos a passar muitas necessidades, porque ela não trabalhava. Até tentou em casas de família, mas faltava ao serviço porque bebia no dia anterior. Também trabalhou em um restaurante, mas não deu certo pelo mesmo motivo. Meu pai nos visitava uma vez por mês e eram visitas rápidas, ele trabalhava na fazenda de vaqueiro e ajudava como podia, mas nem sempre era possível. Lembro que eu chorava muito de fome, nós não sabíamos o que era um café da manhã, éramos muito carentes, alguns vizinhos tinham pena e nos davam comida.
Eu lembro que quando minha mãe saía para festas e bares, às vezes trazia pedaços de carne de churrasco. Não tínhamos nem gás para cozinhar e, nessa época, cortaram a nossa luz também. Ela conversava com a gente quando estava sóbria, parecia que ia mudar, mas tempos depois já estava bebendo novamente.
Após esse divórcio, ela teve outros relacionamentos, trazia os homens para morar na nossa casa, mas um deles a agrediu uma vez, com três tapas na cara na nossa frente. Ela estava bêbada, ficamos quietos e em seguida eles se separaram, durou pouco tempo. Minha irmã reclamava muito disso, sobre ela trazer esses namorados para morar conosco. Eu acho que o amor que ela sentia por eles era maior do que por nós, porque ela priorizava eles. Não é fácil passar por isso quando se é criança, eu me sentia muito desprotegida, porque a gente quer ter aquele aconchego de pai e mãe, e nessa época eu só tinha carinho dos meus irmãos. Minha irmã mais velha não teve infância, ela que cuidou de nós, foi nossa mãe, amiga e companheira, ela sempre esteve ao nosso lado.
Aos 13 anos comecei a trabalhar em casa de família, minha irmã já trabalhava também. Como não tínhamos comida em casa, ela pedia que eu comesse na escola e depois eu ia ao trabalho dela para almoçar, pois os donos da casa deixavam. A situação melhorou um pouco, ela fazia de tudo para não faltar nada para nós. Meu irmão foi trabalhar de vaqueiro em outro lugar, sofria muito porque é um trabalho difícil, mas também ajudava em casa.
A escola como segunda casa
Na escola, os professores me tratavam muito bem, acredito que eles viam minha carência e, quando não tinha material escolar, eles compravam para mim ou conseguiam na escola, para que eu não desistisse de estudar. Ir para a escola era difícil, porque às vezes não tinha lápis, caderno. Minha mãe não ia às reuniões da escola, eu ficava muito triste, porque eu via os outros pais tendo aquele cuidado com os filhos e eu só queria ter uma família, ter alguém para me proteger, cuidar de mim.
Quando tinha jogo (futsal), ela também não ia, eu tinha o apoio do diretor e do professor de educação física. Lembro-me que uma vez fiz um gol e o diretor entrou na quadra e me abraçou como se fosse o meu pai. Naquele dia eu fiquei muito feliz. Isso eu gosto de lembrar, das pessoas que me ajudaram a superar as dificuldades. A escola foi a minha segunda casa.
Casamento precoce e abuso
Quando eu trabalhava em casa de família, uma vez o patrão tentou abusar de mim. Eu gritei e um vizinho me socorreu, deixei o emprego e, dias depois, a esposa dele veio na minha casa, deu um dinheiro a mais e não me disse mais nada. Eu não tinha nem como ter trauma, porque eu precisava trabalhar. Isso veio a se repetir em outra casa, nessa época eu já era casada, e o patrão me oferecia dinheiro para dormir com ele. Eu me recusava e disse que se ele continuasse insistindo, iria contar para a esposa dele. Ele tentou me agarrar à força, puxando a minha blusa, eu gritei, os filhos dele acordaram e ele me soltou. Fui embora e nunca mais voltei.
Trabalhei em outras casas de família, sempre com medo, mas precisava trabalhar. Comecei a namorar aos 14 anos e me casei aos 16 com um rapaz de 18. Eu queria ter uma vida melhor, ter minha própria casa, minhas coisas, queria sair um pouco daquele sofrimento. Quando me juntei com o meu esposo, acho que eu queria criar minha própria história. Moramos em casa própria, construímos ela em 2018, mas falta terminar.
Vício ainda não superado
Minha mãe já passou por duas clínicas, uma era boa, outra não. Uma delas foi no ano passado, onde ficou 23 dias. Ela está sóbria há cinco meses, toma remédio para abstinência, faz acompanhamento com psicóloga, às vezes vai à igreja. Ela está em um relacionamento há tempos com um rapaz que é bom para ela. Quando ela não bebe, é uma boa pessoa, trata bem os filhos, mas se beber, ela se transforma, fica muito agressiva, diz coisas pesadas para a gente, xinga, magoa, é como se ela tivesse a coragem de dizer tudo aquilo que não diz quando está sóbria.
Certa vez, tentamos organizar uma ceia de Natal na minha casa, com a família reunida, mas ela chegou muito alcoolizada, nos xingando, derrubou a churrasqueira, fez um grande escândalo. Meu irmão tentou segurá-la, mas ela gritava, dizendo palavras ruins, ela foi embora e acabou com o nosso Natal naquela noite.
A primeira da família com um diploma
Concluí o ensino médio no ano passado. Este ano vou me inscrever no curso de administração, pois a firma que o meu esposo trabalha como torneiro mecânico tem parceria (desconto) com a instituição. Diante de tantas dificuldades ao longo da vida, nunca pensei em fazer uma faculdade, mas eu tenho o sonho de ter uma loja de roupas. Já vendi roupa usada na praça para ganhar um dinheirinho, sempre gostei de trabalhar, por isso decidi fazer administração. Com a ajuda do meu esposo, queremos ter o nosso próprio negócio.
Serei a primeira da família com diploma de nível superior, isso é muito importante para mim. Nunca imaginei que teria essa chance um dia. Me sinto vitoriosa, pois o que eu não tive hoje eu posso dar para a minha filha de 6 anos.
Sobre a minha mãe, lá no fundo eu tenho esperanças que ela vá mudar. O alcoolismo torna as pessoas ruins, mas eu acredito que o amor é maior que tudo e, em nome dele, os vícios como o álcool podem ser superados. Ainda assim, aconselho a nunca desistir da pessoa, amar, ter muita paciência, não sentir vergonha, que é quase impossível, e ter muita fé."
O efeito devastador do álcool na família
O alcoolismo é uma das doenças de dependência química mais difíceis de serem tratadas, por ser um vício de uma droga lícita e até mesmo vangloriada pela sociedade. "Quando nós vemos um alcoólatra dentro de uma família (às vezes mais de um caso), podemos entender que toda essa família também está adoecida. Todos vivem sob tensão, insegurança, ansiedade o tempo todo e adoecem junto com o alcoólatra", diz o psicólogo Leonardo Morelli.
Em um lar com crianças, o efeito do alcoolismo na família pode trazer consequências devastadoras na vida adulta. "Geralmente o lar é inseguro, a criança cresce no meio de muitos conflitos e relações nada saudáveis, uma hora vê que seu pai ou mãe está de um jeito, outra hora de outro, e tudo isso vira um ambiente conturbado"
Segundo ele, pessoas mais sensíveis (como as crianças), vão carregar esses traumas para o resto da vida, se não procurarem um tratamento. Geralmente crescem sendo muito inseguras, se sentindo culpadas, menos do que as outras pessoas.
Como a família deve lidar
Lidar com pessoas que sofrem de alcoolismo não é uma tarefa fácil. Para Morelli, o primeiro passo é aceitar que aquele membro da família está doente, que ele tem um transtorno de dependência química. "A partir do momento que a família entende que aquilo é uma doença, tem que procurar ajuda não só para o dependente, mas também para ela.
"Eles podem começar ajudando sem agredir, culpar ou xingar, procurar ajuda de profissionais ou grupos, como o AA ?durante a pandemia, o grupo de Alcoólicos Anônimos tem feito as reuniões de forma online ?, que ajudam as pessoas a entenderem a situação e buscarem uma solução para o alcoólatra. Tudo vai depender também do dependente químico, se ele realmente quer sair daquela condição. Se não, você faz de tudo, mas não tem como ele parar de beber, curar sua doença. A primeira coisa é fazer com que o doente entenda que ele precisa sair daquela situação".
Como funciona o tratamento?
A ajuda médica será feita em várias fases e construída de forma multidisciplinar, envolvendo psiquiatra, psicólogos, assistente social e outras abordagens terapêuticas tratadas de forma individualizada.
O tratamento será feito em etapas e o primeiro passo é o diagnóstico por um médico. O processo pode levar meses e se estender por até um ano ou mais.
Na primeira fase, é feita a desintoxicação, em que retira-se totalmente o álcool ou ocorre a retirada gradual da bebida.
Na segunda etapa, ocorre a prevenção de recaída, para a pessoa não voltar a consumir a substância. Além disso, são feitas entrevistas para estabilizar a motivação e trabalhar a manutenção do tratamento.
Depois de alguns meses de terapia, ele estará em remissão parcial ou total, mas os especialistas não falam em cura, já que a doença é crônica como muitas outras e, se não há um cuidado, a pessoa pode apresentar novamente o vício.
Depois disso, o paciente terá que voltar ao médico por pelo menos uma vez ao ano. O alcoolismo tem que ser visto com uma doença como as demais, que precisam de tratamento e cuidado. Por isso, todo o tempo o paciente terá que voltar ao médico e ter um acompanhamento de um profissional.
O indivíduo ainda terá que fazer uso da terapia por praticamente a vida toda, além de se policiar e evitar situações em que era exposto à bebida. A família também precisa cooperar, mas acima de tudo o próprio paciente. Se ele bebia no bar, por exemplo, terá que parar de ir ao local.
*Com informações de matéria publicada no dia 27/07/20
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