No Butantan, cientistas investigam a ação de venenos, e não só de serpentes
Em um sábado à tarde de 1978, diante de um grupo de turistas suíços, em um cercado hoje ocupado pelo guichê de venda de ingressos para os museus do Instituto Butantan, o biólogo Carlos Jared extraía veneno das glândulas de uma cascavel (Crotalus durissus spp).
Terminado o trabalho, exercido em salas fechadas durante a semana, a serpente avançou e cravou os dentes em um de seus pés, coberto por uma bota recém-comprada que deveria bloquear qualquer picada. Jared manteve a calma e guardou a serpente na caixa de onde a tinha retirado. Em seguida, saiu correndo e gritando em direção ao hospital Vital Brazil, a 100 metros de distância, onde recebeu o soro anticrotálico.
Durante duas semanas, como efeito do veneno, sentiu a vista turva e as pálpebras caídas, mas recuperou-se completamente. Hoje os visitantes podem ver as cobras em um serpentário e no Museu Biológico; as extrações públicas de veneno foram suspensas na década de 1990 e hoje são feitas apenas em laboratório.
Ligado ao instituto desde a infância —era filho de um funcionário e estagiou ali, aprendendo a lidar com serpentes, quando estava no ensino médio—, Jared cursou biologia e foi contratado em 1972 como assistente de produção. Trabalhou como serpentarista e com células do sangue desses animais no laboratório de microscopia eletrônica antes de entrar, cerca de seis anos depois, na área a que se dedica até hoje, a biologia comparada.
Sapos, anfíbios e mais cobras
"Com a teoria da evolução, comecei a ver um mundo novo e a buscar os mecanismos de adaptação que explicassem por que os anfíbios tinham glândulas de veneno na pele e as serpentes na boca", diz.
Inicialmente sozinho e depois com a bióloga Marta Antoniazzi, ele examinou as estruturas celulares de produção dos venenos de serpentes, sapos, pererecas, rãs, arraias e lacraias —e como outros animais resistem a eles.
Sapos, por exemplo, resistem ao veneno de escorpiões, dos quais se alimentam, como descrito na revista Toxicon de abril de 2020, indicando que a escassez dos primeiros pode contribuir para a proliferação dos segundos.
O biólogo Pedro Mailho-Fontana, de sua equipe, identificou glândulas de veneno próximas aos dentes em cecílias (cobras-cegas), que formam um grupo de anfíbios. Detalhado em um artigo de julho de 2020 na iScience, esse trabalho mostrou que as cecílias desenvolveram as glândulas de veneno dentárias antes das serpentes, que surgiram de modo independente 150 milhões de anos depois.
"Os venenos não deveriam ser tão complexos nem variar tanto, porque, em princípio, bastaria que matassem a presa", admira-se, em outro laboratório, o biólogo Inácio Azevedo, representante da nova geração de pesquisadores —foi contratado em 2004.
Em resposta à expressão diferenciada de genes, a composição química da também chamada peçonha pode variar em animais da mesma espécie, do mesmo gênero (macho ou fêmea) e com a mesma idade, que vivem próximos. Foi essa a conclusão de um estudo com jararacas-do-norte (Bothrops atrox) de que ele participou, coordenado pela farmacêutica Ana Moura da Silva e publicado em junho de 2018 na revista científica Journal of Proteomics.
"Um veneno tem pelo menos 15 tipos de proteínas, com suas variações", diz ele. Atuando em conjunto, as toxinas podem causar hemorragia, hipotensão arterial, paralisia ou necrose dos músculos, matando em poucos minutos, se essa cascata de reações não for bloqueada.
Em dezembro de 2020, na Molecular Biology and Evolution, Azevedo, com seu grupo, descreveu um mecanismo genético responsável pela produção de uma toxina —uma metaloprotease— diferente das da jararaca, mas com a mesma função, no veneno de um grupo de 58 espécies de serpentes classificadas como não peçonhentas, que formam a maior parte da diversidade desse grupo de répteis.
A importância do sequenciamento genético
No início do século 20, o médico mineiro Vital Brazil Mineiro da Campanha (1865-1950), primeiro diretor do instituto, já havia alertado que as serpentes não peçonhentas também poderiam produzir veneno, com o qual capturam suas presas, embora a posição dos dentes não lhes permita injetá-lo em pessoas.
A pesquisa que levou à identificação do veneno de serpentes vistas como não peçonhentas é uma das que se apoiam nos sequenciadores de DNA ou RNA que começaram a ser instalados em 1997 para o estudo do genoma (conjunto de genes) da bactéria Xylella fastidiosa, a causadora de uma doença dos citros que causava sérios prejuízos para os produtores de laranja no estado de São Paulo.
Ao participar do programa Genoma, apoiado pela FAPESP, o Butantan ganhou autonomia também para, com o tempo, levar adiante projetos próprios de sequenciamento, como o do genoma do verme causador da esquistossomose, em conjunto com a USP (Universidade de São Paulo).
Desde 2002, segundo Azevedo, que participou da instalação dos sequenciadores, durante estágio de pós-doutorado, a análise genômica entrou na rotina dos grupos de pesquisa do instituto, com o apoio de cinco bioinformatas que ajudam a reunir e interpretar os dados.
Por meio do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT) —um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), também apoiado pela FAPESP, atualmente chamado Centro de Pesquisa em Toxinas, Resposta Imune e Sinalização Celular (CeTICS)—, o Butantan apoiou o desenvolvimento de novos medicamentos a partir de moléculas com potencial biológico extraído de animais, em colaboração com empresas.
Picada de aranha e veneno de lagarta
Um dos projetos em andamento no CeTICS é o teste clínico duplo-cego de uma pomada contra picada de aranha-marrom, Loxosceles spp. (ver Pesquisa FAPESP n° 116). Do final de 2018 até o início da pandemia, 140 pessoas atendidas em postos de saúde do estado de Santa Catarina, onde esse tipo de aranha é muito comum, haviam recebido placebo ou a pomada à base do antibiótico tetraciclina, usada com o propósito de favorecer a cicatrização, como estratégia complementar ao tratamento já adotado, com soros neutralizantes e anti-inflamatórios aplicados sobre o local da picada.
A pomada experimental resulta de cerca de 20 anos de pesquisas da bióloga Denise Tambourgi. Com sua equipe, ela identificou a enzima esfingomielinase D como a principal responsável pela ação do veneno e depois verificou em culturas de células e em modelos animais (coelhos) que a tetraciclina poderia neutralizar seus efeitos, especialmente a necrose da pele, como detalhado em um artigo publicado em maio de 2020 na revista Frontiers in Pharmacology.
Tambourgi identificou também em culturas de células humanas o mecanismo de ação dos venenos da lagarta pararama (Premolis semirufa), que vive nos troncos de seringueiras, especialmente na Amazônia. O contato com as cerdas da lagarta causa uma inflamação severa e a perda dos movimentos da mão, a chamada pararamose.
"O veneno contém toxinas que induzem a um quadro clínico semelhante ao da osteoartrite", explica a bióloga, com base nos experimentos mais recentes, publicados em setembro de 2020 na Frontiers in Immunology. Essa pesquisa é uma das que estão em andamento no Centro de Excelência para Descoberta de Alvos Moleculares (Centd), financiado pela FAPESP e pela empresa farmacêutica GSK, visando estratégias de bloqueio dos quadros de inflamação severa.
Vacinas muito além da covid-19
No Butantan há várias vacinas em desenvolvimento. A química Luciana Cerqueira Leite trabalha para levar para testes clínicos quatro versões da BCG (bacilo Calmette-Guérin) recombinante, uma para tuberculose, outra para câncer de bexiga, uma terceira para pertussis (coqueluche) e uma quarta, agora priorizada, para covid-19.
Sua equipe, em decorrência do Projeto Genoma Schistosoma, coordenado pelo laboratório do médico Sergio Verjovski-Almeida, agora também no Butantan, observou que as vesículas de membrana de bactérias usadas em uma vacina experimental contra esquistossomose poderiam ser adaptadas para estimular a produção de anticorpos contra o vírus causador da covid-19.
Também no laboratório de desenvolvimento de vacinas, a farmacêutica Viviane Gonçalves, com sua equipe, em conjunto com o Instituto de Ciências Biomédicas da USP, trabalha para ampliar a escala de produção de uma vacina recombinante contra zika. Por sua vez, um grupo coordenado pelo biólogo Osvaldo Sant'Anna estuda as possibilidades de usar nanoesferas de sílica para transportar a vacina contra hepatite B, que então poderia ser aplicada por via oral.
Artigos científicos citados:
JARED, C. et al. Toads prey upon scorpions and are resistant to their venom: A biological and ecological approach to scorpionism. Toxicon. v. 178, p. 4-7. 30 abr. 2020.
MAILHO-FONTANA, P. L. Morphological evidence for an oral venom system in caecilian amphibians. iScience. v. 23, n. 7, p. 1-7. 24 jul. 2020.
AMAZONAS, D. R. et al. Molecular mechanisms underlying intraspecific variation in snake venom. Journal of Proteomics. v. 181, p. 60-72. 15 jun. 2018.
BAYONA-SERRANO, J. D. et al. Replacement and parallel simplification of nonhomologous proteinases maintain venom phenotypes in rear-fanged snakes. Molecular Biology and Evolution. v. 37, n. 12, p. 3563-75. 28 jul. 2020.
LOPES, P. H. et al. Sphingomyelinases D from Loxosceles spider venoms and cell membranes: Action on lipid rafts and activation of endogenous metalloproteinases. Frontiers in Pharmacology, v. 11, art. 636, p. 1-14. 13 mai. 2020.
VILLAS-BOAS, I. M. et al. Human chondrocyte activation by toxins from Premolis semirufa, an Amazon rainforest moth caterpillar: Identifying an osteoarthritis signature. Frontiers in Immunology. v. 11, art. 2191. p. 1-15. 18 set. 2020.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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