The Iron Human: ele levou tiro, ficou 3 meses em coma e voltou ao triatlo
O ano de 2011 foi um marco na vida do empresário Sérgio Buonarotti, 49. Em 31 de maio, ele completou seu primeiro Ironman —triatlo com 3,8 km de natação, 180 km de bike e 42 km de corrida. "Foi um aprendizado sobre disciplina, paciência e foco." A experiência foi tão positiva que, após 20 dias de descanso, decidiu repetir a dose no ano seguinte. Assim, em julho recomeçou o ciclo de treinamento com seus amigos.
No entanto, cerca de um mês depois seus planos foram abruptamente interrompidos. Durante um treino de bike em uma rodovia, Sérgio e dois amigos foram abordados por oito bandidos armados. "Quando o carro de apoio que nos escoltava se aproximou, um dos assaltantes se assustou e atirou", lembra o empresário.
Um amigo fugiu pedalando e outro teve a bicicleta levada. Já Sérgio caiu no asfalto —havia sido acertado pelo tiro. "A primeira sensação foi de uma queimação na altura dos rins. Achei ter levado uma paulada nas costas. Mas o que aconteceu foi que a bala entrou pelo meio do peito, passando a 1 cm centímetro do coração, atingiu o estômago, atravessou o corpo e saiu por trás", conta.
Sérgio foi levado para uma unidade de atendimento próxima ao local do acidente. De lá, foi encaminhado para fazer uma cirurgia de emergência no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
De cara, perdeu o rim esquerdo, o baço e a vesícula. Depois apareceram lesões no estômago, pâncreas, fígado e intestino. Além de todo o trauma, no hospital ele contraiu a KPC (Klebsiella pneumoniae carbapenemase), uma superbactéria resistente a grande parte dos antibióticos e capaz de produzir infecções graves. Resultado: ficou 87 dias em coma.
Esses três meses foram repletos de intercorrências, com cirurgias, hemodiálise, transfusões de sangue e até um estágio de "quase morte" —experiência que ele teve consciência depois que acordou. Por várias vezes, a família ouviu no hospital: "De hoje o Sérgio não passa". O médico de Sérgio mesmo admitiu que, em diversas ocasiões, antes de encerrar seu plantão foi até a UTI se despedir do empresário, pois acreditava que não o encontraria vivo no dia seguinte.
Em um desses momentos, o médico chamou a família e disse que parecia que Sérgio estava desistindo de viver. E perguntou se haveria algo que pudessem fazer para que reagisse. "Tenho uma ótima relação com minha filha. Então, minha mulher teve a ideia de levá-la até meu leito. Ela estava com 11 anos, não podia entrar na UTI, mas fizeram um acordo e a Marina me visitou. Mesmo em coma, depois desse encontro comecei a melhorar."
Vencendo obstáculos
Sérgio saiu do coma, mas o prognóstico ao receber alta do hospital não era nada animador. Havia possibilidade de sequelas múltiplas e definitivas, inclusive a perda das capacidades de andar, ouvir, enxergar e falar.
"Voltei para casa em cadeira de rodas. Entre os desdobramentos das lesões, tive polineuropatia do paciente crítico: meu pé esquerdo ficou 'caído'. O primeiro neurologista que consultei disse que eu não andaria mais. Não me desesperei, afinal, estava vivo, tinha nascido de novo. Um outro profissional consultado mudou a sentença, mas falou que talvez ficasse com alguma sequela neurológica. Cinco meses depois dei meus primeiros passos."
O retorno ao esporte aconteceu dois anos depois do assalto, justamente na bike. "Pedalei no rolo (acessório que 'transforma' a bicicleta normal em uma ergométrica), com toda a segurança. Mas, em função das inúmeras cirurgias, minha barriga 'vazou'. E o problema segui ocorrendo por muito tempo. Na primeira vez que sai para a rua, minha mulher teve de me encher de absorvente para conter o líquido que escorria da fístula", conta.
Em janeiro de 2014, ele fez sua última cirurgia, para reconstrução da parede abdominal. Cinco meses depois estava treinando normalmente, mas o tratamento continuou. Seu processo de recuperação total durou cerca de seis anos e incluiu 64 cirurgias e 138 transfusões de sangue.
Força de atleta
Sérgio acredita que a dedicação que sempre teve ao esporte contribuiu para que ele suportasse tudo o que passou. "Hoje, vejo que ao treinar me preparei para esse período insano internado e não exatamente para o Ironman. O esporte moldou meu corpo para aguentar o baque."
De volta à rotina de treinos, sentiu vontade de correr uma maratona (42,195 km). Em 2016, aproveitando ainda o desejo de viajar com a família para a Disney, em Orlando (EAU), resolveu encarar o Desafio do Dunga —que consiste em correr, em dias consecutivos, provas de 5 km, 10 km, 21,097 km e 42,195 km. "Estava de volta!"
Homem de ferro
Logo os amigos começaram a incentivar Sérgio a encarar um novo Ironman. "Fazer um Iron é como colocar um avião no ar. O meu avião estava todo quebrado: bússola que não funcionava, uma das asas torta, não tinha roda... Quando fui conversar com o médico sobre a vontade de participar da prova, ele deu todas as recomendações possíveis e imagináveis do que eu deveria fazer. Aí, terminou com 'E reze bastante'."
Em maio de 2017, lá estava Sérgio Buonarotti na largada do Ironman Florianópolis. "Fui para a beira do mar. Eu me senti liberto. Queria ir devagar, fazer o que fosse possível. Foi místico. Naquele ano, a triatleta Adriele Silva (primeira mulher bi-amputada a fazer o Iron) também participou da prova. Eu me senti um grão de areia diante da vida."
"Cruzar a linha final do Ironman trouxe uma sensação de redenção."
Depois disso, Sérgio seguiu treinando e tem planos para as competições voltarem. "Além do Ironman, que me inscrevi em 2020 e foi adiado por causa da pandemia, quero fazer com minha filha o 70.3 de Floripa (prova que tem metade das distâncias de um Ironman). Será uma felicidade imensa estar ao lado dela."
Lição de vida
Sérgio Buonarotti acredita que os quase 90 dias em coma foram uma oportunidade para encontrar-se consigo mesmo. "Foi-me oferecida uma possibilidade de mudança. A sensação é que isso foi colocado no meu caminho para forçar um breque na minha rotina, porque eu precisava. Em alguns momentos achei que Deus tinha sido muito violento, mas se não tivesse sido dessa forma, talvez não tivesse ouvido."
Assim, ele despertou para a espiritualidade. "Profissionalmente cheguei onde queria rápido, mas deixei o espiritual de lado. Tive que quase morrer para renascer, para pensar na vida, nas relações. A gente precisa um do outro para se aperfeiçoar. E no pior momento da minha vida, ali estavam minha família e meus amigos, mais fortes e resilientes do que eu mesmo, para me ajudar."
Remédio não é tudo —a energia e a fé das pessoas que me amam foram fundamentais para minha recuperação. Somos uma centelha divina, somos faísca; para manter a energia viva precisamos uns dos outros. A lição que ficou para mim foi de muita gratidão e humildade"
História de filme
Numa dessas coincidências da vida, o jornalista Lucas Bretas resolveu assistir ao Ironman em 2017 e pegou carona justamente no carro de um dos amigos que estava com Sérgio no dia do assalto. Ao saber de toda a história, decidiu fazer o documentário "1538 ºC - The Iron Human".
Essa é a temperatura de fusão do ferro, um dos componentes sólidos mais resistentes da natureza. O título remete ao nome da prova Ironman (homem de ferro em português) e também ao fato de que o protagonista teve resistência para suportar condições clínicas extremas, como se fosse realmente alguém feito de ferro. "É uma história de superação de um paciente, de uma equipe médica e de toda uma família. Milagres acontecem... Nós só precisamos espalhar", acredita Bretas.
Sérgio conta que o filme, que deve ser lançado neste semestre, relata fielmente tudo que aconteceu. "Sou o protagonista, mas é a história de um monte de gente que teve a necessidade espiritual de se reunir." O trailer pode ser conferido aqui.
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