Estudo com células neurais de neandertais indica evolução do cérebro humano
Chamar alguém de neandertal carrega uma conotação de pessoa tosca, grosseira. Não é possível saber como se comportavam esses hominídeos que já não existem, com os quais a espécie Homo sapiens - o ser humano moderno - chegou a conviver a ponto de carregar em seu genoma registros abundantes de entrecruzamento.
Mas há indícios de que o cérebro dos neandertais e denisovanos (outra espécie de hominídeo extinta) amadurecia mais depressa do que o do ser humano moderno, formando uma rede de conexões mais simplificada.
É o que aponta um estudo que inseriu um gene arcaico em neurônios modernos unidos em organoides cerebrais, ou minicérebros, conforme publicação na revista Science em 12 de fevereiro.
O trabalho teve a participação de pesquisadores da UCSD (Universidade da Califórnia em San Diego), nos Estados Unidos, da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Paraná e da UFABC (Universidade Federal do ABC), neste último caso com financiamento da FAPESP.
"Nossa hipótese é de que as redes neurais do cérebro humano se tornaram muito mais complexas ao longo da evolução", explica o biólogo brasileiro Alysson Muotri, da UCSD, coordenador do estudo. "Mesmo os neandertais tendo vivido na Terra por muito mais anos do que nós, o registro fóssil não indica uma sofisticação tecnológica, artística e de adaptação. Eles não conquistaram o mundo, não mandaram outro neandertal para a Lua e não pintavam quadros", afirma. "Os seres humanos modernos conseguiram fazer tudo isso em um período muito mais curto." É uma visão polêmica, inclusive porque os primeiros registros de arte, na Europa, são atribuídos aos neandertais e datam de antes que grupos de Homo sapiens tivessem chegado por lá.
O grupo de Muotri lançou mão de uma estratégia engenhosa para investigar do ponto de vista celular essa sofisticação cognitiva.
Com a técnica Crispr-Cas9, que rendeu o Prêmio Nobel de Química em 2020 e funciona como uma tesoura microscópica muito precisa, eles cortaram o DNA de células-tronco e inseriram uma mutação no gene chamado Nova1, tornando-o idêntico à sua versão arcaica, que existia nos hominídeos extintos - um processo que ele chama de arquealização.
Depois disso as células foram cultivadas como organoides cerebrais, que de maneira bastante simplificada replicam alguns aspectos da formação de um cérebro.
"Tentar resgatar a fisiologia de uma espécie arcaica com essa técnica é um enfoque muito interessante", comenta a geneticista Tábita Hünemeier, do IB-USP (Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo), que não participou do estudo.
Os minicérebros com o gene arcaico se desenvolveram mais rápido inicialmente, mas ficaram menores do que aqueles com genomas inalterados devido a uma proliferação mais lenta dos neurônios e a uma taxa maior de morte celular programada, a apoptose. A superfície desses organoides arquealizados era mais convoluta, supostamente devido à divisão celular menos organizada.
A concentração de proteínas ligadas às interfaces de comunicação entre os neurônios, ou sinapses, também era muito menor neles, indicando uma rede mais simplificada e menos eficaz de transmissão de informações.
"No ser humano, cerca de 500 proteínas cooperam para que a sinapse funcione", explica Muotri. "Se essa parceria se altera, achamos que as sinapses também ficam diferentes."
As observações levaram o grupo a estudar a eletrofisiologia dos minicérebros. Para os pesquisadores, além das alterações neurais, a modificação do Nova1 resulta em diferenças celulares e fisiológicas na formação das conexões nervosas.
O gene foi selecionado a partir da comparação dos genomas de pessoas de diversas populações modernas com os de neandertais e denisovanos. Entre muitos trechos semelhantes, o grupo identificou 61 variantes genéticas únicas de Homo sapiens. "É um número surpreendentemente baixo, sempre imaginei que seria algo como centenas de genes", conta Muotri. Quatro deles atuam no neurodesenvolvimento, entre os quais o Nova1, que o grupo considerou especialmente promissor por influenciar o funcionamento de centenas de outros genes, em cascata. Por isso, era de esperar que sua alteração causaria efeito perceptível nas células nervosas.
As redes neurais humanas levam muito mais tempo para amadurecer, mas nesse processo lento também se tornam mais complexas. Isso parece trazer vantagens, embora Muotri não arrisque precisar quais são. "O fato de essa variante genética ser igual em diferentes populações humanas indica que, a partir do momento em que surgiu, ela foi mantida por meio da seleção natural."
Hünemeier vê com cautela a possibilidade de extrapolar os resultados para explicar o que aconteceria em um cérebro completo. "Embora os pesquisadores tenham encontrado alterações nos padrões de sinapses, é difícil inferir qualquer fenótipo comportamental ou cognitivo", pondera.
Há quase uma década ela coordenou um estudo, publicado em 2013 na revista American Journal of Human Biology, que comparava os genes relacionados a comportamento e cognição entre neandertais e humanos usando os poucos genomas que tinham sido sequenciados à época. "Não encontramos nenhum sinal de seleção natural que favoreça a espécie humana", resume.
A arqueóloga Mercedes Okumura, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do IB-USP, concorda com a cautela em se comparar organoides ao cérebro completo, mas vê os resultados com otimismo.
"O que acontece em uma placa de laboratório pode nos dar pistas importantes sobre o papel de determinados genes (ou suas variantes) no desenvolvimento e na atividade das redes neurais, além de fornecer informações importantes sobre processos seletivos de determinados genes ao longo da nossa evolução."
Muotri compara a interpretação dos resultados genéticos à arqueologia. "Temos poucas evidências, que comparamos olhando ao nosso redor em busca de semelhanças com o que existe hoje", explica. "Por isso chamamos nosso trabalho de neuroarqueologia."
Nessa comparação, o amadurecimento rápido das redes neurais portadoras da versão ancestral do Nova1 lembra o que acontece no cérebro de chimpanzés. Quando nasce, um bebê chimpanzé é muito mais hábil do que um humano, completamente dependente da mãe por um bom tempo
. "Achamos que essa semelhança entre os chimpanzés e as células arquealizadas é um indício do que poderia acontecer com os neandertais, mas ainda não temos como provar."
O interesse por entender a evolução do cérebro humano existe desde que foram encontrados os primeiros fósseis de hominídeos, de acordo com Okumura. O surgimento desses cérebros enormes em relação ao tamanho do corpo, quando se compara a outros animais, é um enigma para evolucionistas.
"Antes do advento das técnicas moleculares e de DNA antigo, os pesquisadores tinham que se ater ao estudo da anatomia dos crânios fósseis", conta.
Para isso, era necessário fazer moldes do interior desses crânios para inferir o tamanho e o formato dos órgãos que eles abrigaram milhares de anos antes. A neuroarqueologia é, portanto, uma ciência antiga. Mas agora ganhou um novo arsenal de ferramentas para seu estudo.
O próximo passo é explorar os outros 60 genes que diferenciam os seres humanos modernos dos hominídeos extintos, tanto separadamente como seu funcionamento em conjunto. "Também estamos conectando essas redes neurais a interfaces robóticas", conta o pesquisador.
"Conseguimos criar desafios de aprendizado para investigar quais amadurecem mais rápido e conseguem explorar o ambiente de forma mais eficaz." O sistema ainda está em desenvolvimento para refinar o retorno em forma de aprendizado. "Deve acontecer até o meio do ano, se tudo der certo."
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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