Uma em 1 milhão: ela tem uma doença rara na qual som e luz causam espasmos
Era um dia muito quente de verão, no mês de março de 2016. Marcelle Cabral, palestrante e professora aposentada, hoje com 37 anos, lecionava inglês, quando passou mal na sala de aula, sentindo-se fraca e com dificuldade de respirar.
Suspeitou que o culpado pelo mal-estar fosse o calor. Mas, na verdade, naquele momento ela sofria os primeiros sintomas de uma doença neurológica, rara e autoimune, que nunca suspeitou que tinha: a Síndrome da Pessoa Rígida (ou síndrome de Moersch-Woltmann).
"Comecei a sentir muita falta de ar, precisei me retirar da sala, deixei meus alunos com uma responsável e chamei a coordenação. De repente, ficou tudo enrijecido. Tive espasmos musculares, mas todo mundo achou que [o que eu estava tendo] era uma convulsão", relata Cabral.
Aquele episódio, que a marcou para sempre, se tornou a primeira de muitas crises espasmáticas que a natural de Campos dos Goytacazes (RJ) teria que enfrentar. Hoje é comum que ela tenha espasmos no meio da rua, ocasionados por ruídos de carros ou luzes mais fortes.
Inicialmente, passou pelos cuidados de um cardiologista. Mas, cerca de três meses depois da primeira crise, Cabral descobriu que o problema era neurológico. Junto com o diagnóstico, veio a surpresa: ela tinha uma síndrome incurável que afeta só uma pessoa em cada cerca de 1 milhão de indivíduos no mundo todo, de acordo com a entidade norte-americana NORD (Organização Nacional para Distúrbios Raros).
"Em um primeiro momento, fiquei mal [com a notícia], mas reconheci que [o diagnóstico] estava fora do meu controle. É uma doença que não tem cura. Se ficasse chorando e lamentando o tempo inteiro, minha vida não sairia disso. Então preferi viver da forma que puder e que for melhor para mim. Escolhi viver e viver bem", comenta a profissional, que trabalha como coach de liderança.
O que caracteriza a Síndrome da Pessoa Rígida?
O principal sintoma é a rigidez, que é uma hiperatividade dos músculos, sobretudo nos membros inferiores, como nas pernas e na região do glúteo. Mas a síndrome também afeta a musculatura dorsal (das costas) e paravertebral (coluna vertebral), onde há aumento do chamado "tônus muscular".
"O [aumento do] tônus é o aumento da contração muscular em repouso. Todos nós em repouso temos algum grau dessa contração muscular e ele costuma ser baixo. Mas se houver um aumento [fora do normal], vai haver um estado de rigidez, mesmo em repouso", explica Ednaldo Marques, mestre em neuropsiquiatria pela UFPR (Universidade Federal de Pernambuco).
Devido à rigidez, o paciente com essa síndrome pode enfrentar problemas como dor intensa; fadiga muscular; musculatura tensa; dificuldade de ficar em pé; locomoção prejudicada e quedas.
Crises espasmáticas
Outro problema que atrapalha no dia a dia de quem vive com a Síndrome da Pessoa Rígida são as crises de espasmos, como aquela que a professora sofreu na sala de aula. Esses movimentos involuntários podem ser bem graves, causar dor, envolver o tórax e músculos respiratórios, dando sensação de falta de ar e podendo exigir até suporte ventilatório.
Embora nem sempre haja fatores desencadeantes, muitas das crises espasmáticas são provocadas por gatilhos específicos como um simples susto, uma luz ou barulho (uma buzina, um celular tocando); ou até estresse emocional e dor física.
Isso ocorre, de acordo com o neuropsiquiatra, porque a doença atinge o sistema inibitório de contração muscular, ou seja, compromete tanto o conjunto de funções musculares como nervosas (motricidade), que permitem movimentos automáticos ou voluntários.
A palestrante que tem a síndrome, não por acaso, sente isso na pele diariamente. "Estava passeando no shopping na época de Natal. Tinha um trenzinho com a luz piscando e passei mal. Estava sentada e tive um espasmo", recorda. "É óbvio que não quero passar mal na frente de todo mundo, mas é algo que não posso controlar", acrescenta.
O que causa a doença?
A enfermidade ataca o Sistema Nervoso Central e é mais comum em pessoas de meia-idade (de 20 a 40 anos). Como é autoimune, o próprio sistema imunológico é quem se volta contra o organismo, assim como ocorre com lúpus, artrite reumatoide e outras doenças neurológicas como esclerose múltipla.
O principal fator que desencadeia a síndrome são níveis altos do anticorpo anti-GAD. Ele combate a enzima GAD (glutamato descarboxilase), uma proteína que está envolvida na produção do neurotransmissor GABA (ácido gama-aminobutírico), que regula o movimento muscular.
Cientistas ainda trabalham para determinar o que causa precisamente o aumento de anti-GAD. As principais hipóteses dizem que a presença de genes do chamado HLA (complexo do Antígeno Leucocitário Humano) podem ser uma predisposição, quando somada a fatores ambientais, tais como a exposição a um agente viral ou uma toxina.
Sono e alimentação
Marques, que além de neuropsiquiatra é também especialista em medicina do sono pelo Instituto do Sono de São Paulo, comenta que dormir pode ser complicado para uma pessoa com a Síndrome da Pessoa Rígida, uma vez que ela sofre de dor constante e musculatura contraída, o que compromete o relaxamento.
Além disso, Marcondes Junior, professor do departamento de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), cita que também há uma justificativa neurológica para esse problema.
"Essa doença pode causar alterações que vão além da medula espinhal, podendo afetar o próprio cérebro e regiões que estão envolvidas com a questão do sono também", afirma.
Outra questão que pode incomodar o paciente com a síndrome, segundo os especialistas, é a dificuldade de alimentação devido a espasmos estomacais. Marcelle Cabral, por exemplo, faz refeições em porções menores para poder evitá-los. "Se não tomar cuidado acabo tendo crises espasmáticas, fico vomitando ou com uma dor estomacal muito grande", descreve.
Os espasmos afetam a alimentação de quem possui a síndrome porque o aparelho de deglutição é um músculo. Na hora de comer, o abdome deve estar relaxado, mas como a doença faz com que ele fique rígido e contraído, o que ocorre é que a comida não chega com conforto no estômago.
Tratamento paliativo
O principal tratamento para a Síndrome da Pessoa Rígida é clínico e tem como objetivo melhorar a qualidade de vida do paciente, pois não é possível curá-lo. Utiliza-se então doses altas de relaxantes musculares e remédios como imunomoduladores ou imunossupressores para aliviar as dores e os espasmos. Essas medicações são oferecidas inclusive pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Somente em casos nos quais não há resposta aos medicamentos é feito algum tipo de procedimento cirúrgico, em redes privadas. O mais comum é um implante de uma bomba medicamentosa, similar a um catéter, na medula. Lá é colocado baclofeno para induzir o relaxamento nessa região, diminuindo as contrações musculares.
Importância do exercício físico
Outro fator importante para quem possui a síndrome é fazer alongamentos para diminuir a dor e aliviar deformidades ósseas e o encurtamento do tendão e ligamentos. Isso ajuda muito porque as pessoas que têm a doença costumam adquirir hiperlordose, uma postura na qual o abdome fica para frente e a coluna se encontra arqueada.
Marcelle Cabral relata que exercitar-se no caso dela melhorou muito também a questão da mobilidade. Ela faz uso de um coach de treino via aplicativo da academia Smart Fit Coach Online e relata que ter esse recurso durante a pandemia da covid-19 a ajudou muito.
A palestrante começou com uma sessão de exercícios por semana e hoje já faz três rotinas semanais. Ela conta que o app permitiu adaptar o treinamento à doença autoimune por meio de um atendimento personalizado.
Isso foi bem importante, pois, dependendo da intensidade das crises espasmáticas, Cabral precisa dosar os exercícios. Ela usa andador, bengala e por vezes cadeira de rodas, dependendo do quadro de saúde. Já ficou até mesmo 2 meses acamada depois de um espasmo muito forte.
Mas, quando começou o exercício de reabilitação, combinado com a medicação, a vida dela melhorou "1.000%", ela conta. "Não tinha controle muscular para descer rampas, hoje em dia não [isso não mais acontece]. Minha 'passada', como meu médico fala, ficou muito melhor, tenho uma força muscular muito maior", orgulha-se.
Dificuldades no cotidiano
Apesar do exercício físico ajudar a professora a ter uma vida mais saudável, ela explica que ainda enfrenta uma série de barreiras diárias e compara seus músculos a uma bateria de celular: "Quando a bateria acaba, não é possível mais caminhar".
Por isso, sempre que ela sai para fazer compras, usa cadeira de rodas por precaução. "Já aconteceu outro dia em uma loja que queria chegar até o caixa e a minha cadeira de rodas não passava", relata.
Sem poder sair do lugar, ela só pôde ouvir o seu número na fila ser chamado insistentemente pela atendente. "Me senti constrangida [com a situação]", recorda. "Nunca senti discriminação abertamente, mas, sim, falta de compaixão", lamenta.
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