Acumuladores têm toneladas de lixo em casa; quadro pode começar na infância
Resumo da notícia
- Acumuladores guardam toneladas de objetos inúteis dentro de casa, o que pode pôr a saúde da vizinhança em risco
- Comportamento acumulador pode surgir na infância, de maneira imperceptível, e se agravar na vida adulta, se não for tratado
- Nem todo acumulador tem distúrbios mentais, mas os casos mais graves podem estar ligados ao TOC ou à esquizofrenia
Entre ratos, baratas e escorpiões, a catadora de recicláveis Maria Lázaro de Oliveira, 53, e o artista plástico Luiz Carlos de Martino, 54, acumularam 20 toneladas de objetos inúteis dentro de casa, de móveis, colchões e equipamentos eletrônicos quebrados a carrinhos de supermercado.
Após terem suas casas limpas por uma força-tarefa, ambos estão empenhados em superar o comportamento acumulador, que pode surgir na infância e ter relação com o TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) ou esquizofrenia.
Apesar de não se conhecerem, Maria e Luiz tinham rotinas parecidas até o início do ano. Saiam às ruas de Ribeirão Preto (SP), onde vivem, e retornavam com tudo quanto é tipo de objetos, muitos deles retirados de caçambas de lixo, e os guardavam até precisarem competir com o lixo por espaço dentro de casa.
Antes da limpeza, realizada após denúncias de vizinhos, Maria não conseguia andar pelo quintal. A situação de Luiz era tão grave quanto, já que sua sala de estar, que liga o quintal à cozinha e ao quarto de sua mãe, havia se tornado uma trincheira intransitável de quinquilharia.
Maria diz que começou a acumular em junho, após romper com o ex-marido. Desestabilizada, ela não conseguia vender nada do que catava e, sem dinheiro, viu as contas atrasarem e a geladeira esvaziar. "Deus me deu força para trabalhar, mas comecei a ter depressão, deixei tudo amontoar e não quis mais saber de nada. Não tinha força para sair daquela situação sozinha", relembra.
Já Luiz conta que não se lembra quando começou a acumular, mas sua mãe estima que levou cerca de 15 anos até a casa se tornar inabitável e ser interditada pelo Corpo de Bombeiros em dezembro de 2020, quando 15 toneladas foram retiradas do imóvel numa operação de dois dias com 30 pessoas.
Tratamento
O professor de psiquiatria Amilton dos Santos Júnior, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), diz que há muitos fatores que levam à acumulação e frisa que nem todo acumulador tem distúrbio mental. "O mesmo sintoma, a acumulação, pode ter significados diferentes para cada pessoa", explica. "Há pessoas saudáveis, mas que têm personalidade possessiva e não conseguem se desfazer das coisas."
Entretanto, quando o acúmulo está dentro do espectro do TOC, o indivíduo até reconhece que seus pensamentos são estranhos, mas não consegue controlá-los. "Já nas síndromes psicóticas, há um delírio. Eles dizem que precisam acumular porque, quando o mundo acabar, é o que vai garantir a sobrevivência, por exemplo."
A psicóloga Daniela Tusi Braga, doutora em psiquiatria pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), diz que o acúmulo costuma surgir na infância, quando a criança passa a ter dificuldade de descartar objetos simples, como um papel de bala. "Às vezes, ninguém nota na infância, porque os pais descartam o que a criança não consegue sozinha. Quando o indivíduo cresce e se torna independente para fazer o que quiser, o transtorno aparece", afirma.
Braga, que se especializou no tratamento do TOC, diz que, além do uso de medicamentos, em casos onde há recomendação psiquiátrica, a terapia é essencial no tratamento de acumuladores. "A gente treina o paciente para pensar sobre os objetos de outra maneira. Por mais difícil que seja, é preciso treinar o paciente a separar os objetos úteis dos inúteis e descartar o que não lhe tiver serventia", diz.
Mudança de vida
Após a operação que retirou cinco toneladas de quinquilharia de sua casa, Maria promete tomar cuidado para não voltar a acumular, mas não vai deixar de catar o que vir pela rua e considerar útil. "É meu trabalho. Sem isso, vou fazer o quê?".
Ela também quer reformar a casa, cuja estrutura foi prejudicada pelo lixo, e abrir um brechó no quintal para se sustentar e tentar ir ao dentista, já que seu maior sonho é recuperar os dentes que lhe faltam na boca. "Agora será diferente. Pego os recicláveis e levo direto para o depósito. Acumular de novo, jamais. Acordar e ver aquele monte de rato e barata correndo era ruim demais. Ver tudo limpinho me deixa muito feliz", diz.
Luiz também está contente. Voltou em janeiro de uma internação num hospital psiquiátrico, diz que procurou ajuda no CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) e quer se dedicar aos quadros que pinta em placas de madeira. "Senti a perda do que foi jogado fora, mas fiquei feliz ao ver a beleza que ficou a casa. Minha mãe ficou feliz, então fiquei feliz também. Agora, só vou pegar da rua coisa boa", promete à mãe, Neuza, que o acompanha na entrevista.
Situação de risco
A gestora ambiental Kelly Cristina da Silva é quem coordena a força-tarefa de limpeza criada pela Prefeitura de Ribeirão Preto. Em 2020, a equipe retirou 67 toneladas de dentro de 12 casas. O plano para 2021 é manter o trabalho, até atender os cerca de 100 acumuladores mapeados.
"Estas situações geram muito risco, desde picadas de escorpiões, transmissão de doenças por ratos, até ao risco de se machucar mesmo, porque a maioria das casas são antigas e as estruturas são afetadas pelo lixo", diz.
Ela diz que o trabalho não termina com a limpeza e continua a visitar os acumuladores para ajudá-los a reconstruir suas casas, a partir de doações de materiais de construção e mão de obra, e evitar que eles voltem à estaca zero. "A maioria diz que junta para vender. Às vezes, até vendem, mas é muito pouco. Tem casos de até 20 anos de acumulação. Se não tem o envolvimento da família e eles não forem às consultas, nosso trabalho acaba se perdendo", diz.
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