Além da violência, população trans sobrevive aos transtornos psicológicos
"Não vou dizer que não tenho medo de sair e não voltar viva, porque essa é a realidade de quase todos os transexuais e travestis no Brasil." Essa frase é de Maria Fernanda Ribeiro Pereira, mulher travesti que desde a infância vive o desafio de assumir sua identidade de gênero em um dos países que mais matam travestis e transexuais no mundo. Somente no ano passado, foram cerca de 175 assassinatos, segundo o relatório Observatório de Pessoas Trans Assassinadas Globalmente, feito pela ONG Transgender Europe.
Desde janeiro de 2008, quando a pesquisa começou, até setembro de 2020, o mundo registrou mais de 3,6 mil mortes; cerca de 40% delas ocorreram no Brasil. Dados que ainda podem estar longe da realidade, devido à subnotificação, e escancaram uma verdade que assusta pessoas como Maria Fernanda, que saem de casa sem saber se voltam. "Sinto medo todos os dias. Medo de sair e encontrar uma pessoa intolerante que possa ceifar a minha vida, simplesmente porque não concorda com a minha identidade de gênero."
Além do risco de morte, Maria Fernanda também suporta xingamentos e piadas sobre sua sexualidade, além das agressões físicas. E o fato se repete para cerca de 94% da população trans que afirmaram ser vítimas de violências motivadas pela discriminação, segundo o dossiê Assassinato de Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Para Maria Fernanda, "não é à toa que pesquisadores estimam que, no Brasil, a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, menos da metade da população".
Maria Fernanda conta que precisou de acompanhamento psicológico ainda na infância, logo após ingressar no sistema educacional. Na época, 1986, diz ela, "eu era diagnosticada com um distúrbio, uma doença". Essa realidade começou a mudar somente em 2018, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de classificar o transtorno de identidade de gênero, que acontece quando uma pessoa não se identifica com o gênero com o qual nasceu, como uma doença mental. Agora, a definição passou para incongruência de gênero e permanece no capítulo sobre saúde sexual da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, que entra em vigor a partir de janeiro de 2022.
Mas o estigma e o preconceito continuam. Maria Fernanda acredita que foi dado apenas um pequeno passo rumo ao final da luta para a visibilidade dos trans e travestis. Atualmente, com 40 anos, mestre em educação sexual pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e coordenadora pedagógica em uma escola pública de Ribeirão Preto, Maria Fernanda entende a importância da educação sexual nas escolas e a necessidade de profissionais preparados para abordar o assunto. "Falar sobre identidade trans a crianças é extremamente importante, porque eu fui uma criança trans", conta a educadora, alertando para a necessidade de a sociedade estar atenta às especificidades e proteção da identidade de gênero durante a infância, pois "as instituições que estão preparadas para o acolhimento e protetividade dessas crianças não têm o mínimo de orientação e compreensão sobre as crianças trans".
A especialista em educação sexual destaca ainda a importância do acompanhamento psicológico durante o processo de reconhecimento da identidade de gênero. Afirma que este é um período em que o indivíduo passa por uma pressão social muito grande e que "principalmente adolescentes trans não têm maturidade e experiência de vivência social para suportar tamanha discriminação e ódio".
Medo da discriminação e o risco de suicídio
Os índices de mortalidade e violência não trazem apenas o medo de assumir a identidade de gênero, mas também podem provocar transtornos de ansiedade, depressão e, até mesmo, pensamentos suicidas, conta o pesquisador em gênero e sexualidade, Vinícius Alexandre, coordenador do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero (Videverso) do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (Lepps) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. "Quando se teme o tempo todo pela própria vida, como prospectar um futuro? Como pensar algo à frente? Se o indivíduo não é capaz de prospectar algo, então, de repente, não vale a pena viver".
Apesar de não existirem dados oficiais, Vinicius Alexandre diz que pesquisas apontam "índices de 31% a 50% de suicídio entre essa população". Além disso, afirma que, dentro do grupo LGBTQI+, são os transgêneros - transexuais, travestis e não binários - que apresentam "os maiores índices de depressão, ansiedade e de outras patologias complexas, como o transtorno bipolar". Para o especialista, a falta de informações governamentais revela o descaso em relação a essa parcela da sociedade.
Além dos transtornos psicológicos, o abandono familiar está entre as causas para o suicídio entre a população transgênero. O especialista diz ser "muito difícil nos prepararmos para enfrentar as adversidades, se não temos alguém para nos mostrar que temos essa capacidade e, infelizmente, o desamparo é uma característica muito comum nas famílias de pessoas trans".
Alerta que é necessário o diálogo entre os familiares e os transexuais, principalmente nos casos em que os primeiros sinais surgem na infância. Segundo Alexandre, a ansiedade e a depressão também podem ocorrer em crianças trans e, nestes casos, podem trazer consequências para o desenvolvimento. "Não falar é muito pior do que qualquer coisa, porque você joga a criança em um vazio onde ela não tem as representações que precisa. Ela fica com uma sensação de desamparo muito grande".
É por isso que médicos e psicólogos deveriam estar preparados para oferecer atendimento especializado para essa população, conta o especialista. Afirma que o contexto social no qual trans e travestis estão inseridos vai refletir diretamente na sua saúde mental. Para Alexandre, "nós temos que falar sobre a saúde mental da população transgênero, justamente para mostrar que isso é assimilável, que isso é possível de ser compreendido e, mais do que isso, é necessário".
Acompanhamento psicológico gratuito em Ribeirão Preto
Em Ribeirão Preto, a população de transexuais e travestis, assim como todos os integrantes do grupo LGBTQI+, encontra apoio psicológico gratuito no Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da USP, que além de atuação em diversidade sexual, por meio do Videverso, presta atendimento terapêutico a famílias, psicoterapia e orientação psicanalítica, assim como apoio psicológico ambulatorial para portadores de doenças crônicas, programa de atendimento em anorexia e bulimia nervosa, entre outros.
O CPA presta atendimento a adolescentes, crianças, adultos, idosos e instituições dentro das atividades e áreas exercidas pelo Departamento de Psicologia da FFCLRP. Além de supervisionar estágios e proporcionar treinamento profissional aos alunos do 4º e 5º anos do curso de Psicologia da faculdade, nas áreas de Psicologia Clínica, Organizacional e Escolar.
Os interessados podem acompanhar o calendário de abertura de vagas clicando aqui.
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