Médicos se formam incapazes de atender pacientes suicidas, aponta estudo
Resumo da notícia
- Pesquisa apontou que somente 0,5% dos estudantes de medicina são plenamente capazes de atender pessoas com ideação suicida
- Apesar da limitação estatística devido à restrição geográfica, estudo acende alerta sobre falha na formação médica, segundo CFM
- Entre 2009 e 2019, casos de suicídio cresceram 44,22%, segundo levantamento realizado no DataSUS
Enquanto casos de suicídio crescem a cada ano no Brasil, um estudo publicado no início de 2021 pela RBEM (Revista Brasileira de Educação Médica) revelou que médicos estão se formando incapazes de atender pacientes que pensam ou tentam cometer suicídio.
A pesquisa reflete a experiência de pacientes como a estudante de letras Bianca*, 23, que aos 18 tentou se suicidar. Internada em casa, ela encontrou seus remédios, que estavam escondidos, e os ingeriu de uma vez. Ao descobrir, sua mãe a levou para o hospital, mas a médica de plantão a mandou de volta para casa e não lhe deu nenhuma orientação além da receita para que tomasse imediatamente mais um tarja-preta.
"Eu não conseguia andar. Estava dopada. Tiveram que me arrastar até o pronto-atendimento, mas a médica falou que eu estava lúcida e não tinha motivo para ficar internada", relembra a estudante. "Senti que não fui levada a sério. Era como se aquilo não fosse motivo suficiente para ter ido ao hospital".
Ao conversar com sua psiquiatra no dia seguinte, Bianca descobriu que a falta de sensibilidade da plantonista não era sentimentalismo de sua parte. Um mês depois, ela ainda foi diagnosticada com hepatite medicamentosa, o que poderia ter sido evitado se o atendimento tivesse sido adequado, segundo sua nutróloga. "O certo era fazer uma lavagem estomacal e, se não desse mais tempo, eu devia ao menos ter ficado em observação", diz.
Falha na formação médica
A história de Bianca não é única. Entre 188 estudantes de medicina do 1º ao 6º ano que participaram da pesquisa publicada na RBEM, somente um deles, o equivalente a 0,5%, declarou ter plena capacidade técnica para atender um paciente com ideação suicida. Como o questionário permitia ainda respostas com concordância ou discordância parciais, 16% afirmaram ter habilidades limitadas para a tarefa, enquanto os incapacitados somaram 72,8%, e os que se consideraram neutros, 11,2%.
O estudo apontou ainda que somente 8,5% dos alunos são plenamente capazes de identificar e classificar comportamentos de risco suicida e 4,3% sabem realizar corretamente a notificação de tentativa ou concretização de suicídio, que é obrigatória e deve ser encaminhada pelo médico aos órgãos competentes em até 24 horas após o atendimento.
A pesquisa foi conduzida entre alunos da UEPA (Universidade do Estado do Pará). Ela tem limitações estatísticas devido à restrição geográfica, mas acende um alerta sobre uma falha na formação médica, de acordo com o psiquiatra Salomão Rodrigues Filho, do CFM (Conselho Federal de Medicina). A instituição se posiciona contra a abertura de novas escolas de medicina.
"O médico está cada vez mais despreparado. Com o aumento indiscriminado de novas faculdades de medicina e turmas imensas, cada vez temos mais dificuldade em preparar o aluno para estar atento à saúde mental. Além disso, tanto no sistema público quanto privado de saúde, o médico não tem tempo para ouvir o paciente. Ele quer chegar logo ao diagnóstico para fazer a prescrição de medicamento ou pedir exame e mandar o paciente retornar depois", diz o conselheiro.
Segundo levantamento do CFM a partir de dados do CNES (Cadastro Nacional das Entidades de Saúde), 77% das cidades brasileiras com faculdades de medicina não possuem leitos suficientes para o ensino prático dos alunos. A região mais deficitária é o Norte, onde, entre 32 escolas de medicina, somente uma está localizada em um município com preparo para uma boa formação. A região com melhor desempenho no levantamento é o Centro-Oeste, com 31,3% dos cursos localizados em municípios adequados.
"O médico generalista precisa ser capaz de rastrear suicídio no pronto-atendimento. Não é porque tenho um paciente aparentemente muito mais grave para ver em seguida que vou abreviar a entrevista com o outro", explica o conselheiro. "Não sou contra abertura de boas faculdades de medicina, mas de faculdades péssimas, que colocam no mercado profissionais incapazes".
Uma das autoras do estudo, a estudante Lívia Limonge, que cursa o 6º ano de medicina na UEPA, afirma que os resultados da pesquisa não surpreenderam, mas serviram de provocação para que seus colegas abram os olhos para o suicídio, que é a segunda principal causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos no mundo, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).
"A grade curricular de medicina prevê que a gente discuta suicídio e saúde mental como um todo, mas isso não está necessariamente sendo cumprido. Suicídio ainda é um tabu mesmo entre médicos. Como é possível aprimorar a formação, se o assunto não é discutido? Vi minha formação refletida nos resultados desta pesquisa", diz Limonge.
No Brasil, em 2019, 13.520 pessoas se suicidaram, uma alta de 6,18% ante os casos de 2018. No acumulado da década, o aumento foi de 44,22%, segundo o Ministério da Saúde. Os dados de 2020 ainda não foram divulgados pela pasta, mas especialistas apontam chance de aumento, tal qual ocorreu em países como Japão, devido à instabilidade emocional provocada pela pandemia de covid-19.
*O nome foi alterado a pedido da entrevistada
Onde buscar ajuda
O CVV (Centro de Valorização da Vida) oferece gratuitamente atendimento via telefone, e-mail ou chat, sob sigilo, para prevenção do suicídio. Para mais informações, acesse cvv.org.br ou disque 188, qualquer dia e a qualquer hora.
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