"Meu pai era esportista, mas isso não importou. A covid leva qualquer um"
Nem mesmo o estilo de vida saudável e o histórico de atleta foram capazes de salvar o médico Guido Amílcar Orozco Durãn da covid-19. O guatemalteco naturalizado brasileiro faleceu no último dia 27 de fevereiro, um mês depois de completar 76 anos. A seguir, a publicitária Pamela Gabriela Orozco, 32, uma das filhas de Guido, conta quão rápida e assustadora foi a luta que o campeão de caratê perdeu para o coronavírus
"Na sexta, dia 13 de fevereiro de 2021, telefonei para o meu pai e notei que a voz dele estava afônica. Pedi que fosse ao hospital, mas ele disse que ia se automedicar e no sábado iria.
No dia seguinte, ele também não foi o médico e comentou que parecia que estava com uma gripezinha, com um pouco de coriza e falta de ar, mas sem febre e sem tosse. Briguei e insisti que fosse ao hospital e fizesse o exame de coronavírus. No domingo, os sintomas pioraram e ele pediu que meu irmão o levasse ao pronto-socorro do Albert Einstein, em São Paulo. Já chegou lá com a oxigenação muito baixa e fez vários exames.
Na madrugada de domingo, falei com o meu pai pela última vez, por telefone —ele ainda estava bem confiante. Suas últimas palavras para mim foram: 'Filha, fica tranquila, acho que estou com pneumonia e vou sair do hospital em três dias'. Mas ele não saiu.
Eu e minha mãe estávamos em Salvador, onde fomos passar um mês na casa de familiares, e ficamos angustiadas para voltar para casa. Mas só conseguimos voo alguns dias depois da internação de meu pai.
Na segunda-feira saiu o resultado da tomografia, meu pai estava com 75% do pulmão comprometido. A médica disse que precisaria intubá-lo, mas ele resistiu e pediu para ver o exame. Como médico, ele sabia que o quadro dele era grave, mesmo bravo, acabou cedendo e disse para os médicos fazerem o que era necessário.
Meu pai foi intubado sem saber que estava com covid-19, o resultado positivo só chegou algumas horas depois. A intubação foi feita com a sedação mínima, mas como ele estava desconfortável com o tubo, precisaram aumentar a dose e ele foi induzido ao coma.
Infelizmente, não cheguei a tempo de vê-lo antes de ser intubado, mas conversei com os médicos e eles disseram que o caso era complicado. Além do tratamento tradicional com os antibióticos e o corticoide, indicaram um tratamento com plasma de sangue doado por pessoas que se recuperaram da covid-19. Segundo a equipe, era uma aposta que poderia beneficiar meu pai, nós autorizamos o uso.
Meu pai reagiu bem ao plasma, teve uma melhora, mas depois de alguns dias pegou uma infecção hospitalar e piorou bastante. A febre aumentou, ele teve choque séptico e a falência gradativa dos órgãos. Os rins pararam de funcionar e ele passou a fazer hemodiálise. Estava sobrevivendo a base de muita medicação e com suporte de aparelhos.
O hospital autorizou que eu e a minha mãe o visitássemos na UTI. Foi uma cena impactante vê-lo cheios de fios. Apesar de estar com o semblante calmo, ele não parecia o homem alegre que estávamos acostumadas a ver. Minha mãe ficou chocada, travou e só chorou. Já eu estava com muita esperança, conversei com ele como se ele estivesse normal, disse para continuar lutando, coloquei alguns áudios dos irmãos dele para ele ouvir, falei que a nossa cachorrinha estava o esperando em casa.
A gente sabia que o estado do meu pai era grave, mas aparentemente estava tudo sob controle, dentro possível. Porém, duas horas depois da visita, minha mãe me telefonou desesperada, dizendo que os médicos tinham ligado, que meu pai piorou e era para a gente ir ao hospital se despedir dele. Encontrei minha mãe e meus irmãos lá, mas não me despedi. Tive fé de que meu pai iria se curar até o último momento, pedi para ele continuar lutando.
Isso era sexta-feira, dia 26 de fevereiro. Os médicos disseram que se ele resistisse por mais seis horas, ele realmente era um lutador. Sentia uma tristeza e incerteza que me matava por dentro, mas continuava acreditando na recuperação dele. Voltamos para casa e nessa noite eu não dormi.
Na manhã seguinte, vi que não tinha nenhuma ligação do hospital e fui para lá com um padre que ia fazer uma oração, a pedido das minhas tias que estão na Guatemala. Chegamos lá no horário marcado, às 9h30. Passei em frente ao lugar onde meu pai costumava ficar, mas ele não estava, na hora me deu um aperto no coração muito estranho.
Um dos médicos me viu e já chegou se desculpando, disse que houve uma falha de comunicação: 'Seu pai não está mais aqui, ele faleceu às 4h04 da manhã'
Minha primeira reação foi de muita raiva, fazia horas que meu pai tinha falecido e ninguém nos avisou, fiquei chocada com isso, faltou sensibilidade por parte do hospital comigo e com a minha família. Depois de um tempo, mais alguns profissionais vieram me pedir desculpas, eu me retirei e fui ligar para a minha mãe, para os meus irmãos e meus tios para dar a notícia.
Acho que como forma de se retratar, o hospital permitiu que eu e o padre fôssemos ao necrotério fazer uma oração pelo meu pai. Como a causa da morte foi o coronavírus, o corpo estava lacrado. No mesmo dia, ele foi transferido para o crematório.
Fizemos uma cerimônia rápida com a presença de alguns familiares e de poucos amigos. Meu pai morreu e foi cremado no dia 27 de fevereiro, um mês depois de ter completado 76 anos. Ele partiu deixando cinco filhos, esposa e três netos, além de muitos pacientes que o amavam e choraram com a sua partida.
Meu pai estava na ativa. Após ter atuado por mais de 40 anos como clínico geral em pronto-socorro, seguiu trabalhando em uma clínica particular durante a pandemia.
Eu dizia que era arriscado por causa da idade dele, mas ele falava que o sistema de saúde estava sobrecarregado e que o papel dele como médico era contribuir nesse momento, mesmo que fosse atendendo no consultório, não poderia fugir desse luta que o mundo enfrenta
Nós conversávamos sobre o coronavírus em casa, ele dizia que se pegasse, achava que o organismo dele seria forte o suficiente para resistir ao vírus. Ele confiava muito no fato de ter sido um homem saudável ao longo da vida, de ter uma alimentação regrada, ser esportista e nunca ter fumado nem ingerir bebida alcoólica.
Meu pai foi um dos primeiros homens a participar do 1º Mundial de Karatê que se tem registro na história, em Tóquio (1970). Também disputou as edições de Paris (1972) e Madri (1980) da competição. Foi campeão centro americano representando a Guatemala.
Ele aliou sua paixão pelo esporte à medicina: foi médico da confederação Brasileira de Karatê nos Jogos Pan-americanos no Brasil e diretor médico da Confederação Brasileira de Karatê e da Federação Panamericana de Karatê durante anos.
Deu aulas de caratê e participou de alguns torneios até 2016, quando rompeu o ligamento do pé e parou de treinar, mas continuou fazendo caminhada, nunca deixou de realizar atividade física. Venceu muitas lutas e competições e suas recordações, troféus, conquistas e legado permanecerão em nossos corações.
Mas ele foi derrotado na luta contra o coronavírus, que interrompeu a jornada que ainda tinha pela frente. Mesmo sendo um homem saudável e esportista, nada disso importou para a covid-19. O vírus não escolhe cor, raça, idade. Pode levar qualquer um
Muitas pessoas não entenderem ainda a magnitude dessa doença. O resultado disso é que hoje estamos colhendo o fruto da irresponsabilidade de quem achou que não ia dar em nada. As pessoas precisam parar de subestimar o coronavírus. Ele é real, ele mata e deixa um vazio irreparável, está destruindo vidas e famílias."
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