Erradicação da varíola há 50 anos no Brasil adotou técnicas usadas até hoje
Há 50 anos, em abril de 1971, 19 moradores da Vila Cruzeiro, uma comunidade de baixa renda no bairro da Penha, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, foram os últimos a terem varíola no Brasil. Também acompanhados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), Bangladesh, em 1975, e Somália, dois anos depois, fizeram os derradeiros registros da doença que na década anterior causava uma mortalidade próxima a 30% das pessoas infectadas, após fazê-las sofrer com bolhas que cobrem o corpo todo antes de se abrir e liberar um líquido amarelado cheio de pus.
Como nenhum outro caso foi notificado nos anos seguintes, em 1980 a OMS reconheceu a erradicação da varíola no mundo. Causada pelo vírus Poxvirus variolae, transmitido de pessoa a pessoa ou por roupas e objetos contaminados, essa doença perseguira a humanidade durante milênios. "A varíola não é apenas a doença para a qual foi desenvolvida a primeira vacina, antes mesmo do desenvolvimento da microbiologia, mas também a primeira que foi erradicada por meio de ações de saúde pública em escala mundial", afirma a epidemiologista Rita Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
A campanha de erradicação da varíola no Brasil foi a única que atingiu plenamente seus objetivos. A da malária, embora não tenha conseguido eliminar o problema, reduziu sua área de transmissão, que abrangia todo o país na década de 1940 e a partir dos anos 1970 ficou restrita à região Norte, informa o médico epidemiologista Eliseu Alves Waldman, da FSP-USP (Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo). Segundo ele, a febre amarela foi o alvo da primeira campanha de erradicação nas Américas, no início do século, mas a identificação do ciclo silvestre da doença a inviabilizou. Em seguida, outra campanha visou a eliminação do mosquito Aedes aegypti, transmissor da febre amarela e da dengue. As duas experiências "permitiram o desenvolvimento de estratégias de trabalho de campo que foram úteis no combate à varíola", diz Waldman.
A perspectiva de erradicar a varíola assentava-se sobre as características do vírus, da doença e da possibilidade de usar uma vacina com uma eficácia de 95%. O vírus da varíola é de DNA, geneticamente estável, de um tipo único (sem variações), exclusivo de seres humanos. Já o Sars-CoV-2, causador da covid-19, é um vírus de RNA, que sofre mutações e vive em outros animais. "A infecção variólica tinha um curso bem definido", diz Waldman. "O aparecimento de lesões de pele, os exantemas, coincidia com o início da eliminação do vírus, portanto o isolamento era uma medida efetiva, que diminuía o risco de transmissão." Diferentemente do que ocorre com a covid-19, não havia transmissão entre pessoas assintomáticas.
Apoiada em orientações da OMS, a campanha de erradicação da varíola no Brasil adotou conceitos e técnicas de trabalho em saúde pública usados até hoje para conter surtos ou epidemias de novas doenças. Uma das estratégias, a vacinação de bloqueio, aplicada em moradores da vizinhança de um caso confirmado ou suspeito, logo após o registro de um único caso, ajudou a conter o reaparecimento do sarampo nos últimos 20 anos e é utilizada no plano de erradicação da poliomielite. O isolamento de pessoas doentes, adotado para conter a varíola, é uma prática antiga que tem sido útil para diminuir o contágio do novo coronavírus. Quem nasceu antes de 1971 talvez se lembre de uma inovação das campanhas contra varíola daquele período: as pistolas usadas para vacinar com rapidez milhares de pessoas no mesmo dia e adotadas também na década de 1970 contra a meningite.
"A experiência com a erradicação da varíola nos trouxe chão para implantar em 1973 o PNI (Programa Nacional de Imunizações) e em 1975 o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica [SNVE]", diz Tania Maria Fernandes, historiadora da COC-Fiocruz (Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz) do Rio de Janeiro e autora de Vacina antivariólica: Ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920 (Editora Fiocruz, 2010). O PNI, integrando as equipes federais, estaduais e municipais de saúde, distribui 19 vacinas contra doenças infecciosas em recém-nascidos, crianças e adultos. O SNVE nasceu a partir das unidades usadas para identificar os casos novos de varíola, centraliza informações sobre doenças de notificação obrigatória e tem sido usado para combater doenças como a poliomielite e agora a covid-19.
Relatos antigos
A varíola pode ter sido a causa da morte de um terço da população de Atenas, na Grécia, em 430 a.C. Trazida pelos colonizadores europeus, foi uma das enfermidades que contribuíram para a eliminação dos povos nativos da América do Sul no século XVI. No Brasil, o primeiro surto de que se tem notícia foi em 1563, na ilha de Itaparica, em frente à cidade de Salvador, na Bahia, matando principalmente indígenas.
Em 1904, os quase 7 mil casos registrados na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, motivaram o médico Oswaldo Cruz (1872-1917) a propor a ampliação da vacinação, já obrigatória; o protesto da população, conhecido como Revolta da Vacina, terminou com 945 presos, 30 mortos, 110 feridos e 461 pessoas deportadas para o Acre. Em um livro publicado em 2009, Smallpox - The death of a disease (Varíola - A morte de uma doença), o epidemiologista norte-americano Donald Henderson (1928-2016), que comandou a campanha da OMS, estimou que a varíola deve ter causado a morte de 300 milhões a 500 milhões de pessoas no mundo ao longo do século XX.
A imunização contra essa enfermidade era uma prática antiga. Os antigos chineses coletavam as crostas das feridas das pessoas com varíola, pulverizavam-nas e as sopravam nas narinas de outras pessoas para fazê-las ganhar imunidade contra a doença. No fim do século XVII, médicos de Constantinopla removiam o líquido das feridas dos doentes e molhavam nele uma agulha, que usavam para fazer pequenas incisões em pessoas sadias.
Foi o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) quem disseminou a vacinação na Europa, a partir de 1796. Ele observou que mulheres que ordenhavam vacas não contraíam varíola se tivessem adquirido antes o vírus próprio de animais, mais brando que o dos seres humanos, ao qual era semelhante. Jenner coletou o pus da mão de uma ordenhadora, que havia tido a varíola bovina, e o inoculou em um garoto saudável, de 8 anos. O menino contraiu a forma amena da doença, ficou curado e, quase dois meses depois, Jenner inoculou nele o líquido de varíola humana. Como não adoeceu, deduziu-se que estava imune. Jenner repetiu a experiência em outras pessoas, incluindo o próprio filho. Alguns anos depois, outros médicos europeus adotaram essa técnica.
No início do século XX já se produzia a vacina com o vírus Vaccinia, que causa a varíola bovina, no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio, no Instituto Butantan, em São Paulo, e por laboratórios de outros estados. "A imunidade conferida pela vacina era duradoura e poderia durar a vida inteira", diz Barata. "A inoculação da vacina provocava uma infecção local que deixava uma cicatriz indelével, permitindo aos serviços de saúde saber quem havia e quem não havia sido vacinado."
No Brasil, depois de mais de meio século de ações esparsas, em janeiro de 1962 o então presidente João Goulart (1919-1976) criou a CNCV (Campanha Nacional contra a Varíola). A vacinação levou a uma redução de 9.600 casos e 160 mortes, em 1962, para 3.623 casos e 20 mortes, em 1966, quando a CNCV foi extinta e criada a CEV (Campanha de Erradicação da Varíola), em resposta à pressão internacional. "Mesmo com um discurso internacional claro a favor da eliminação da varíola, o Brasil criou a campanha de erradicação somente em 1966", observa Fernandes.
O médico paulista Cláudio do Amaral Jr. (1934-2019), coordenador da CEV de 1970 a 1971, reforçou a vigilância de casos novos e a vacinação em massa, principalmente aos sábados e domingos. "Festas populares, romarias, encontros religiosos, feiras, manifestações artísticas populares, quartéis, escolas públicas, paradas de ônibus e grandes empresas foram locais utilizados para vacinação em massa", comentou o cientista político e historiador da saúde Gilberto Hochman, da COC-Fiocruz, em um artigo publicado em 2011 na revista Ciência e Saúde Coletiva. "As equipes deveriam estar preparadas para estender a vacinação até a noite para dar conta de todos os que compareciam."
O próprio Amaral ia às escolas para conversar com professores e estudantes. Uma vez, em Nova Iguaçu, no estado do Rio, cercou-se de crianças do primeiro ano, falou da varíola e mostrou fotos de pessoas com as bolhas na pele decorrentes da infecção pelo vírus. Em seguida, ele contou que as crianças só teriam aquela doença se não fossem vacinadas, mostrou o injetor, explicando que não era um revólver, e perguntou quem queria ser vacinado. "Todos quiseram", ele contou em uma entrevista concedida a Fernandes, Hochman e Daiana Chagas. Terminada a campanha no Brasil, Amaral trabalhou por cinco anos na Índia e outros cinco na Etiópia ajudando a combater a varíola. "O mais notável nesse esforço todo foi conseguir levar a vacina aos locais mais remotos do mundo, garantindo uma cobertura muito alta, capaz de interromper completamente a circulação viral", observa Barata.
A varíola desapareceu, o vírus que a causa está guardado em laboratórios de alta segurança e apenas militares ainda são vacinados. O fim da vacinação no mundo, em 1980, porém, criou dois problemas. Um deles, aponta Waldman, foi a perda da chamada imunidade cruzada para os outros integrantes da família dos poxvírus, que também eram bloqueados e, sem a vacina, poderiam chegar às pessoas mais facilmente. De janeiro a setembro de 2020 na República Democrática do Congo, por exemplo, a OMS registrou 4.594 casos suspeitos, com 171 mortes, de monkeypox, vírus similar ao da varíola, que também causa lesões de pele, embora com uma letalidade menor; os reservatórios desse vírus são macacos e pequenos roedores. O outro problema é o receio de que grupos terroristas possam obter o vírus da varíola e usá-lo como arma biológica, já que atualmente a vacina é aplicada somente em militares. No Brasil, a população civil com menos de 50 anos não a recebeu.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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