Quando papéis se invertem: dilemas dos filhos que têm que cuidar dos pais
Assim é o ciclo da vida: somos cuidados e temos alguém que zela pela nossa saúde, mas em determinado momento os papéis se invertem e cabe a nós todas as decisões sobre aqueles que protagonizaram nossa criação.
Com o processo de aumento da longevidade, é esperado que o número de pessoas que vivem com algum tipo de doença neurodegenerativa também se eleve. No caso da demência, por exemplo, a projeção é que o diagnóstico triplique de 50 milhões para 152 milhões até 2050, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). Isso porque a chance de desenvolver doenças degenerativas cresce conforme a idade avança, e os novos quadros já correspondem a 55 mil diagnósticos por ano.
Nesse contexto, quando uma mãe ou um pai se torna totalmente dependente de atenção e auxílio, além de aceitação e entendimento, é preciso que o filho desenvolva habilidades que não são ensinadas na escola e nem são muito difundidas na sociedade. A situação frequentemente é encarada com surpresa, uma experiência não normativa, geradora de estresse, tensão e adaptação. Mas também pode ser vista como brecha para uma retribuição madura e espontânea, dependendo dos sentimentos e das relações estabelecidas até ali.
Ninguém nasce pronto para cuidar do outro
A dinâmica e a história familiar costumam influenciar bastante em situações delicadas e marcantes como a descoberta de uma doença degenerativa entre um dos seus integrantes. Se a relação com os genitores não foi afetivamente bem construída, cuidar dos pais pode gerar sentimentos conflitantes, o que somado a questões sociais e econômicas, tem chance de se tornar uma dificuldade concreta pela sobrecarga de funções.
É possível que haja sensações de tristeza e luto pelas perdas que os esperam, revolta e indignação por terem que lidar com a situação, ou até medo, culpa e desespero por não saberem de que forma agir. O diagnóstico também pode gerar negação e frustração pelas mudanças que devem ocorrer dali em diante e pelos filhos terem que assumir novos papéis e tarefas nessa conjuntura de cuidados. Não é fácil reconhecer e internalizar a responsabilidade por limpar, medicar, alimentar, observar as ações, adaptar o ambiente, monitorar exames e receitas, checar feridas e hematomas daqueles adultos.
Passo a passo
Para começar, é preciso listar e acionar a própria rede de apoio para entender melhor sobre o problema ou doença dos pais, e isso exige tempo, recursos e disposição. É buscar ajuda para lidar emocionalmente e financeiramente com as demandas envolvidas, seja dentro da própria família, entre amigos e colegas, seja no SUS (Sistema Único de Saúde), com assistentes sociais ou organizações do terceiro setor. O ideal é obter suporte nessa missão de entender sobre a doença, seu curso, sintomas, consequências, terapias e tratamentos possíveis.
As tarefas precisam ser divididas igualitariamente entre irmãos e parentes. Não é raro que toda a carga emotiva seja direcionada para a figura da filha, já que as mulheres sempre foram consideradas as principais responsáveis pela manutenção das relações familiares e pelos cuidados dos seus integrantes. Mas isso precisa ser questionado. Lidar com uma pessoa dependente na família não envolve apenas boa vontade, não cabe somente ao gênero feminino e tampouco é uma circunstância de menor valor.
Outra atitude fundamental é lembrar que a pessoa a ser cuidada já teve independência e autonomia e estabeleceu seus gostos e hábitos. Diferente de uma criança, não precisa ser "educada" nessa fase da vida, e sim cuidada. É importante criar situações comedidas e de estímulo, que a possibilitem realizar determinadas atividades, mesmo que devagar e por etapas, mas que respeite seu tempo e suas capacidades.
Apesar da intensidade do que isso pode representar, é um momento para rever laços e despertar compaixão ao perceber que os pais chegaram a um estágio de limitação e dependência, numa oportunidade inclusive de exercer a solidariedade intergeracional. É importante se apropriar disso como um espaço de aprendizado, de partilha e de vivências transformadoras. Quem assumir essa responsabilidade precisa sentir que foi uma escolha, e não uma condição imposta. Essa pretensa liberdade faz muita diferença e ajuda na manutenção das relações saudáveis na família.
Muito além das boas intenções
Quando existe uma conjuntura favorável, que envolve divisão igualitária de tarefas, apoio de um cuidador profissional, aconselhamento psicoterapêutico e recursos financeiros para bancar os gastos e a assistência necessária, a atividade de cuidar fica menos densa e trabalhosa, o que pode abrir caminho para reflexão, autoavaliação e crescimento. Compartilhar experiências com outras pessoas que vivenciaram situações similares é bastante aconselhável para contribuir nesse processo.
Entretanto, há uma alta taxa de adoecimento daqueles que assumem a função de cuidador dos pais, principalmente entre mulheres de classes mais baixas, que ficam sobrecarregadas com o acúmulo de tarefas e pelas dificuldades na falta de recursos e de oportunidades devido à desigualdade social.
Apesar de complexo, o equilíbrio nas tarefas de cuidar do outro e de si é imprescindível. Os cuidadores precisam sinalizar quando estão acumulando funções e estabelecer limites nessa relação, reservando tempo para fazerem suas próprias atividades —e que não sejam somente obrigações. Assim é possível evitar que esta fase da vida seja tida como um fardo e se configure em novas partilhas e aprendizados, que envolvam amor, carinho e reciprocidade.
Fontes: Deusivania Falcão, psicóloga e professora associada dos cursos de graduação e pós-graduação em gerontologia da EACH-USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo); Isabel Cristina Gomes, psicanalista, professora titular do Departamento de Psicologia Clínica do IP-USP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) e coordenadora do LabCaFam (Laboratório de Casal e Família: Clínica e Estudos Psicossociais); Katia Simone Ploner, professora titular do curso de psicologia na Univali (Universidade do Vale do Itajaí) e coordenadora do projeto Atenção à Saúde do Idoso e seus Familiares.
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