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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


"Sou filha de um abusador": família também sofre, quando não é a vítima

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

André Aram

Colaboração para o VivaBem

20/03/2021 04h00

Natural de Curitiba (PR), a vendedora Luciane Ribeiro, 47, sofre até hoje os traumas de ter convivido com um pai abusador sexual. "Tenho dificuldade para me relacionar, não apenas no sentido amoroso, mas também com amizades (masculinas). O primeiro amor que nós temos são os nossos laços familiares e quando não temos, não acreditamos em outros", diz.

Suas primeiras lembranças das suspeitas do pai são de quando tinha 5 anos. Ele perguntava para sua mãe sobre o seu corpo. Quando teria seios? Quando iria ficar menstruar? Do primeiro casamento de seus pais, Luciane tem mais três irmãos homens e uma irmã caçula. Eles se divorciaram quando ela tinha 15 anos (na ocasião, sua irmã estava com 10), e o pai conseguiu na justiça a tutela e a casa. Naquele tempo, ela notou ações estranhas nele: "Ele tinha mania de sempre pôr a minha irmã no colo. Ela não podia passar perto dele, que ele a pegava e carregava no colo, dava beijos demorados no rosto dela. Aquilo me incomodava muito".

Aos 16 anos, ela viu da sala o pai saindo do quarto em que ela dormia com a irmã apenas de cueca. "Tive um pressentimento muito ruim. Na noite seguinte, fui para cama cedo e fingi estar dormindo, ele entrou no quarto e assediou minha irmã. Fiquei chocada, comecei a me mover na cama, tossindo, como se tivesse acordando, ele então saiu correndo para o banheiro". Luciane contou tudo para a irmã, que chorou muito.

Em outro dia, quando o pai assediou uma amiga das meninas que dormia na casa da família, as irmãs decidiram ir para casa de uma tia. "A única atitude que ela teve foi de chamar o pessoal da igreja para orar. Não tivemos apoio de ninguém, nenhum parente ou vizinho fez nada por nós e todos ficaram sabendo do abuso, inclusive os colegas de trabalho dele. Ninguém nos orientou como agir, como se nada tivesse acontecido".

Luciene quando era criança - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Luciane quando era criança
Imagem: Arquivo pessoal

As meninas acabaram voltando para casa. Após anos, o pai se casou e foi morar no Japão. Na despedida, longe da esposa, pediu perdão. "Nós éramos inocentes e, por sermos da igreja, tínhamos aquela coisa de 'acreditar no ser humano'. Eu até acredito, mas sei que pedofilia não tem cura".

Os anos se passaram e, depois de o pai já ter retornado ao Brasil divorciado e com uma filha deste último casamento, um dos irmãos de Luciane contou que estava preocupado, porque "viu coisas estranhas na casa do pai". Contou que ele levava a filha e mais duas primas dela (sendo uma de 8 anos) para a casa dele, montava a piscina, e costumava entrar na água com elas. Foi quando o irmão de Luciane notou uma ereção.

A desconfiança maior veio quando dois de seus irmãos foram à casa dele em um sábado de manhã e ele demorou muito para abrir o portão. Quando finalmente abriu, usava apenas um roupão. Ao entrarem na casa, as janelas estavam fechadas e as meninas estavam no sofá com olhares assustados. "Eles me disseram que havia um clima esquisito ali". Luciane avisou a mãe das meninas, que morava no Japão, mas dois anos se passaram até que ela voltasse ao Brasil e questionasse as meninas.

Durante a conversa com a filha e as primas, todas negaram, exceto a mais nova, que teve uma crise de choro, contando tudo. Ela tinha 10 anos, e os abusos haviam começado aos 8. O pai foi condenado a 15 anos e 9 meses de prisão. Foi constatado que suas vítimas tinham sempre entre 8 a 12 anos. Ao longo do tempo, a pena dele foi reduzida em função de problemas de saúde e bom comportamento. Ele ficou preso por três anos e meio.

"Foi um período muito difícil para mim, eu chorava diariamente, perdi metade do meu cabelo, tive depressão, pesadelos. A partir daí, a máscara da minha família começou a cair, em alguns encontros na casa de nossa mãe, ele se tornou o 'coitadinho'. Essa invalidação é o que acaba com a gente, com a nossa estrutura psicológica". Luciane descobriu da mãe que também foi abusada pelo pai na infância e chegou a ouvir dela se as meninas não tinham gostado. "Eu fiquei arrasada, pensei em desistir de viver, não via mais significado para estar viva diante de tantas decepções. Foram muitos anos sendo invalidada, muitos anos calada, é um silêncio que grita".

Hoje ela decidiu cortar relações com a família e só tem mantido contado com a meia-irmã, com quem tem planos de se reencontrar em breve, para estreitar os laços que o passado afastou.

Pedofilia é doença sem cura; abuso sexual é crime

Sentir desejo sexual por crianças é um transtorno mental sem cura. Nos livros médicos, o transtorno pedofílico está no grupo das parafilias —comportamentos sexuais que desviam do que é considerado normal, como zoofilia ou necrofilia.

É bom salientar que nem todo abusador de crianças é pedófilo. Pesquisas feitas por médicos em países como Brasil, Canadá e Estados Unidos dizem que de 20% a 30% dos abusadores presos são diagnosticados com o transtorno. Para ser considerada pedófila, a pessoa deve, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5):

  1. Sentir por um período de pelo menos seis meses fantasias e impulsos sexualmente excitantes ou comportamentos intensos e recorrentes com crianças de 13 anos ou menos;
  2. Colocar em prática esses impulsos sexuais, ou os impulsos ou as fantasias sexuais causarem sofrimento intenso ou dificuldades de relacionamento;
  3. Tiver no mínimo 16 anos de idade e for pelo menos cinco anos mais velho que a criança ou as crianças do item 1.

Para quem conviveu com pessoas do tipo, terapias cognitivas-comportamentais, de linhas psicanalíticas e medicamentos podem ajudar bastante. De todo modo, segundo especialistas, é possível superar o trauma, principalmente remover essa culpa da vítima, um dos grandes pontos de sofrimento na vida adulta.

Uma das consequências mais comuns sofridas pelas vítimas de abuso sexual é o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e abuso de substâncias. O tratamento medicamentoso deve sempre estar associado à psicoterapia, que é de fundamental importância em uma abordagem integral do sofrimento psíquico.

A maioria dos abusadores são próximos da família, são às vezes parentes de primeiro grau que moram ou frequentam a casa da vítima, pessoas com quem geralmente a criança tem uma relação de cuidado. Isso viola duas vezes a condição do pequeno: a primeira pelo abuso do próprio corpo e a segunda é porque subverte uma lógica social e cultural que é a do cuidado, já que os adultos são responsáveis pela integridade física e emocional de uma criança. Isso tem um efeito muito importante na vida dela, porque ela tem uma relação ambivalente com esse sujeito, ela confia e depois num minuto seguinte ela é vítima de uma situação de violência.

Nesse contexto, a denúncia do agressor não acontece pelo medo das consequências e dos desdobramentos para a família e sociedade. A invalidação da dor da vítima também ocorre pela postura de negação do ocorrido, em que a família interpreta como fantasia da vítima, por imaginar a impossibilidade do abuso, em consonância com a posição de confiança em que o agressor em grande parte das vezes está inserido.

É importante identificar o valor da palavra que uma criança tem quando passa por uma experiência dessa, portanto buscar ajuda para transformar um acontecimento traumático numa experiência compartilhada. A primeira forma de transformar é nomear o acontecimento, reconhecer os afetos envolvidos nisso. O trabalho terapêutico, seja com profissional seja nas relações sociais é essencial. Você conta até que em algum momento aquilo se transforma num traço, que pode ser posto ao lado. Ele não ocupa mais valor central da sua vida.

Fontes: Antônio Serafim, psicólogo e diretor da unidade de neuropsicologia e do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do HC; Patrícia Bader, psicóloga, gestora do Núcleo Pró Creare e dos serviços de psicologia do hospital e maternidade São Luiz Itaim, da rede D'or São Luiz; Milena Sabino Fonseca, médica psiquiatra da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.