"Jangadas" nos neurônios são chave para entender ação de antidepressivos
Regiões especializadas na membrana das células do sistema nervoso, ricas em colesterol e conhecidas como jangadas lipídicas —lipid rafts, em inglês— podem ser a chave para entender a ação dos medicamentos antidepressivos.
Em um estudo com participação da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), cientistas verificaram que o nível de colesterol nessas regiões da membrana celular determina a estrutura e o funcionamento de um receptor, uma proteína que serve de alvo para os antidepressivos nos neurônios. A pesquisa é descrita em artigo publicado na revista científica Cell.
"Para o estudo foram utilizadas diversas classes de antidepressivos, incluindo drogas clássicas, como a fluoxetina e a imipramina, e os antidepressivos de ação rápida, descobertos mais recentemente, como por exemplo a ketamina", conta ao Jornal da USP o pesquisador Cassiano Ricardo Alves Faria Diniz, que realiza pós-doutoramento na FMRP e participou do trabalho.
"A partir de abordagens in vitro, em laboratório, e in silico, usando simulações computacionais de alta performance, verificou-se que nas jangadas lipídicas os antidepressivos se ligam diretamente ao receptor TRKB, sendo assim capazes de modular a atividade do receptor ao passo que estabilizam a sua estrutura tridimensional."
"A proteína TRKB, quando ativada, conduz a uma cascata de vias intracelulares responsáveis, em linhas gerais, pelo refinamento e o reforço de conexões sinápticas, ou seja, entre as células do sistema nervoso", explica Faria Diniz.
"A ação do TRKB regula então a atividade de regiões específicas do sistema nervoso central, como por exemplo o hipocampo e o córtex pré-frontal, que são envolvidas com a modulação das nossas respostas comportamentais ao estresse."
Os dados obtidos na pesquisa indicam que o TRKB pode assumir diferentes conformações, dependendo da quantidade de colesterol na membrana. "Os antidepressivos, por sua vez, estabilizam a conformação do receptor num estado mais propenso à ativação", relata o pesquisador.
"Observamos experimentalmente que a mesma alteração na região do TRKB que prejudicou a interação deste com a fluoxetina, determinada por simulação computacional, reduziu também a interação do TRKB com vários outros antidepressivos in vitro."
Mecanismo de ação
Essa mesma alteração do TRKB, quando presente em camundongos, torna os animais menos responsivos aos antidepressivos, sejam eles de ação rápida ou lenta. "Portanto, os experimentos in vivo [em animais] corroboram os dados in vitro e in silico ao sugerir que, de fato, a potencial ação direta sobre o TRKB é importante para a ação dos antidepressivos", destaca Cassiano Diniz, "mesmo quando o efeito destes são colocados à prova dentro de organismos biológicos complexos".
De acordo com o pesquisador da FMRP, acreditava-se que a diferença no mecanismo de ação primário entre drogas clássicas e novas seria a responsável pelas diferenças na latência de efeito, ou seja, no tempo necessário para os efeitos clínicos serem detectados.
"O resultado do nosso trabalho nos leva a crer que, além dos mecanismos primários, a atuação dos antidepressivos depende de uma ação direta sobre o TRKB", ressalta. "A latência para o efeito seria decorrente da demora pelos antidepressivos clássicos, mas não por novos compostos como a ketamina, em atingir concentrações suficientes no sistema nervoso central para agir sobre o TRKB."
As conclusões do estudo poderão direcionar o desenvolvimento de novas moléculas capazes de se ligar ao TRKB com maior afinidade, modular sua resposta e ao mesmo tempo serem capazes de ultrapassar rapidamente a barreira hematoencefálica, avalia o pesquisador.
A barreira hematoencefálica é uma proteção natural do corpo, espécie de "cordão de isolamento" que impede que vírus, fungos, bactérias e outros corpos estranhos cheguem ao sistema nervoso central.
"Lembrando que milhões de pessoas ao redor do mundo fazem uso diário de antidepressivos, e que essas drogas são usadas no tratamento de diversos distúrbios psiquiátricos, além de serem importantes também para o tratamento de outras doenças, como por exemplo a dor crônica", afirma.
"Assim, compreender melhor o mecanismo de ação destas drogas facilitaria o desenvolvimento de novas moléculas com melhor perfil terapêutico e, portanto, é de grande interesse da clínica médica."
O estudo foi liderado por Plínio Casarotto e Caroline Biojone, atualmente contratados como pesquisadores no grupo do professor Eero Castrén, da Universidade de Helsinki (Finlândia), ambos egressos do Departamento de Farmacologia da FMRP e ex-bolsistas da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), incluindo um estágio na Universidade de Helsinki pelo programa BEPE. O trabalho contou com a colaboração de Faria Diniz, também do Departamento de Farmacologia da FMRP, quando em estágio pelo programa BEPE (via bolsa de pós-doutorado Fapesp).
Também participaram do estudo pesquisadores das Universidades de Freiburg (Alemanha) e Bergen (Noruega), além do Departamento de Física da Universidade de Helsinki, responsável pela modelagem molecular. O artigo Antidepressant drugs act by directly binding to TRKB neurotrophin receptors foi publicado na revista científica Cell em 4 de março.
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