Você foi "criança exemplar"? Saiba como esse rótulo impacta sua vida adulta
Resumo da notícia
- Mesmo rótulos que parecem inofensivos ou positivos, acabam 'engessando' a criança dentro daquele padrão de comportamento
- Quando há esforço e sofrimento para corresponder aos elogios, elas deixam de desenvolver habilidades e competências
- Uma das possíveis repercussões é crescer com medo de decepcionar os pais ou cuidadores e de perder o amor deles caso "falhem"
Ela é tão boazinha, quietinha, uma "princesa". Ele é um menino "de ouro", o mais comportado da família. Em princípio, quem elogia uma criança o faz com a melhor das intenções: valorizar, de fato, a conduta exemplar do pequeno —uma conduta inspiradora sob a ótica adulta, vale frisar. Em geral, elogios têm uma função motivadora, mas na infância podem ter efeitos nocivos à personalidade que se perpetuam na vida adulta.
É óbvio que não se trata de uma regra e que o impacto disso depende de vários fatores, como contexto socioeconômico, ambiente familiar, tipo de educação dada, nível cultural dos pais etc. É uma questão, porém, que deve ser esmiuçada porque pode ser modificada a tempo. De acordo com Deborah Moss, neuropsicóloga especialista em comportamento infantil e mestre em psicologia do desenvolvimento pela USP (Universidade de São Paulo), é importante ter em mente que um comportamento não define quem a criança é em sua totalidade. "Rotular por conta de uma determinada característica acaba limitando as chances de os pequenos se expressarem de modo diferente do que os outros esperam", afirma.
Qualquer rótulo acaba sendo um decreto para cada ser humano, segundo Stella Azulay, diretora da Escola de Pais XD, educadora parental pela Positive Discipline Association e especialista em análise de perfil e neurociência comportamental. A questão é que na infância temos pouco repertório para nos definirmos e fica muita fácil absorver como verdade aquilo que falam de nós.
"Como adultos já sofremos esse tipo de influência, o que dizer então das crianças?", questiona ela. Mesmo rótulos que parecem inofensivos ou positivos acabam 'engessando' a criança dentro daquele padrão de comportamento, não permitindo que ela se desenvolva de acordo com sua essência ou que tenha a possibilidade de agir diferente quando sentir necessidade.
A chamada "profecia autorrealizadora" também pode se envolver nesse mecanismo, fazendo com que a criança assuma o papel que lhe destinam e reprima potencialidades, habilidades e características. "Até os 8 anos de idade, a criança está formando diversas conexões neuronais. É um período crítico, porque ela absorve tudo como uma esponja e pode formar uma ideia ilusória em cima de tudo que os adultos falam sobre ela e se tornar um adulto que corresponda exatamente ao que foi 'predestinado' a ela", explica.
Medo de decepcionar e perder o amor dos pais
Algumas crianças, de acordo com Moss, dão conta de assumir o papel esperado, lidam com leveza com ele e não sofrem maiores consequências, nem durante a infância nem ao longo da vida. "No entanto, quando há esforço e sofrimento para corresponder aos elogios, elas deixam de desenvolver habilidades e competências", diz. Muitas também evitam externalizar certas emoções ou falar sobre determinadas dificuldades, com receio de desapontar os pais. Às vezes, sequer conseguem perceber ou nomear o que sentem. Isso acaba vindo à tona com uma mudança brusca de comportamento que dá um susto na família —baixo rendimento escolar repentino, por exemplo.
Uma das possíveis repercussões é crescer com medo de decepcionar os pais ou cuidadores e de perder o amor deles caso "falhe". "Isso ocorre com certa frequência", observa Bruno Mendonça Coêlho, psiquiatra de adultos e da infância e adolescência e doutor em ciências pela USP (Universidade de São Paulo). "Entretanto, depende da interação que acontece na família. Pais que cobram muito e condicionam seu afeto a realizações dos pequenos tendem a contribuir para que as crianças sintam medo de errar e frustrá-los", aponta.
Segundo, Danielle Admoni, psiquiatra da infância e adolescência na Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), esse temor também é bastante comum em crianças ansiosas que acabam sendo exigentes e perfeccionistas. "Ou seja, elas se cobram através do próprio olhar, mas principalmente em função do olhar alheio e daquilo que o outro gostaria de ver. Acabam, assim, criando um padrão de autocobrança que nunca será saciado e que é alimentado também por quem está de fora, formando uma 'bola de neve' de exigência", diz.
Como romper o padrão tóxico na idade adulta?
Na idade adulta, podem ocorrer diversos desdobramentos de uma infância marcada pelo rótulo de "criança de ouro". Entre os principais problemas enfrentados por essas pessoas estão a dificuldade de defenderem a si mesmas, não se colocarem como prioridade nas relações, desejo constante de agradar para se sentirem aceitas, não conseguir falar "não", perfeccionismo e amor exigente nas relações. "Além de todas essas consequências, elas podem desenvolver o hábito de fazer muitas coisas escondido, mentirem e até viverem uma vida dupla", indica Azulay.
Para se desvencilhar desses comportamentos tóxicos, é fundamental tomar consciência do sofrimento que alguns padrões de comportamento geram. "Se você percebe que sempre experimenta uma enorme angústia ao dizer 'não' ou mesmo não consegue fazê-lo, seria importante começar a se questionar", sugere Coêlho.
Outros sugestões para romper o ciclo —ou, pelo menos, a começar a lidar melhor com a questão:
- Entenda que o fato de ser parte de uma família não obriga ninguém a ter que concordar com tudo o que acontece nela. Laços de sangue não significam, necessariamente, obediência cega a padrões de comportamento familiares;
- Na opinião de Coêlho, uma certa dose de egoísmo é "essencial na vida". "O egoísmo é uma reação que pode ser benéfica. Às vezes, a diferença entre veneno e remédio está na dose. Um pouco de egoísmo é necessário para entendermos que nossos interesses, vontades e desejos são dissonantes dos interesses, vontades e desejos de outras pessoas. É importante refletir sobre isso antes de decidir-se por algo", aconselha;
- Permita-se arriscar e "fugir" do que lhe é esperado ou foi designado. Boas experiências podem ocorrer --e tudo bem se não der certo. "Tente de novo, talvez de outra maneira. Isso não quer dizer que sempre vai dar errado ou que você é incapaz de fazer aquilo. Pode ser a maneira, o momento, mas não você a causa do insucesso em questão", pondera Admoni;
- Se afastar de quem desencadeia comportamentos tóxicos é sempre producente, mas um processo terapêutico, sem dúvidas, ajuda muito no rompimento de padrões nocivos;
- Busque ambientes onde você possa ser você mesmo sem medo de falar o que pensa. Em ambientes novos, ninguém chega com estigmas", diz Azulay;
- Não repita aquilo que lhe fez mal, perpetuando o ciclo de sofrimento. "Cuidado ao rotular as pessoas, principalmente crianças, trazendo imposições e limitações desnecessárias. Elas realmente 'vestem a camisa' e incorporam o que lhes é dito", afirma Admoni.
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