"Conversar" com ente querido que já morreu pode ajudar a superar a perda
Resumo da notícia
- Contar sobre os últimos acontecimentos da vida para alguém que já morreu é mais comum do que se imagina e pode ajudar no processo de luto
- Por mensagens nas redes sociais ou mesmo falando sozinho, especialistas afirmam que manter a pessoa viva nas lembranças é uma forma de superar a perda
- Uma das formas de amenizar a dor é poder contar com pessoas ao redor e falar o que está sentindo
Assim que passou no exame de habilitação, a jornalista Jéssica Souza enviou uma mensagem por WhatsApp para o pai. Ela sabia que ele jamais leria, mas sentiu a necessidade de contar sobre sua mais nova conquista. Ele morreu havia cinco dias e ela já tinha reprovado no exame anteriormente. Contar a novidade foi uma forma de senti-lo por perto. "Nem pensei muito na hora que mandei a mensagem e depois que mandei, desabei. Queria materializar essa vontade de ter um diálogo com ele de novo, mas depois veio a dor de não ter uma resposta".
Souza ainda assimila a perda e não sabe definir ao certo se seguirá 'em contato' com o pai. Mas como ela, muita gente costuma recorrer a aplicativos de conversa, mensagens nas redes sociais e até mesmo um papo consigo mesmo para manter presente alguém que já se foi. É mais comum do que se imagina e pode fazer muito bem.
Nesses casos, mais importante do que uma resposta é o desabafo, como explica Maria Júlia Kovács, professora aposentada do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e membro-fundadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte. "Cada pessoa encontra sua maneira de lidar com o luto e isso é o mais importante. Se, para você, isso faz bem, então faça. Não precisa comentar com ninguém. É uma forma de manter na lembrança".
Até hoje, quatro anos depois da morte de Danielle, a relações públicas Nathalie Santos Gomes segue marcando a irmã em posts nas redes sociais. "A gente se marcava em memes falando de coisas que irmãos fazem e comentava o post uma da outra. Até hoje eu marco, mas em publicações de homenagens, em datas específicas. Sinto que estou aliviando o que estou sentindo". No primeiro ano da morte da irmã, ela conta que acessava as conversas de WhatsApp constantemente, com medo de esquecer a voz de Danielle.
Segundo Kovács, quando há uma perda por morte, rompe-se o vínculo presencial (aquele contato que se tinha o dia todo com a pessoa, as conversas, atividades). Mas vínculos intensos, que são aqueles que temos com pais, parceiros, marido, mulher, filhos, netos, irmãos, jamais são rompidos. "Muitas vezes, é como se a pessoa tivesse presente. A gente continua falando com ela, contando as coisas. Isso favorece a memória. A pessoa se mantém em nossa vida, não de forma presencial, porque não é mais possível, mas como lembrança".
Também é na forma de lembrança que a fonoaudióloga Letícia Carreiro Amaro mantém contato com a avó Suzana, que morreu em 2020, aos 97 anos. "Ainda sinto muita saudade dela, converso com ela desde sua partida, conto as novidades, peço força e orientação. Ela sempre foi minha maior conexão com Deus e acredito que agora está ao lado dele, orando por mim e me abençoando. Não tenho dúvidas que se tornou meu anjo da guarda".
Ela conta que a mãe a presenteou com a aliança de casamento da avó e até hoje carrega a peça para onde vai. "É como um pedacinho da minha avó. Quando viajo, conto pra ela que está passeando comigo. Não sei ao certo quanto essas conversas me consolam ou me entristecem, mas sinto essa necessidade de conversar com ela. Sinto que está comigo a todo momento e isso me conforta. A saudade continua e acredito que será eterna, assim como meu amor por ela".
Para a psicóloga Deusa Samu, especialista em tanatologia (estudo sobre a morte) pela USP, independentemente da forma que se escolha manter o contato com alguém muito querido que já faleceu, é importante externalizar os sentimentos. "O fato de a pessoa manter o diálogo com uma fotografia, escrever uma carta ou um diário, incluindo a pessoa que faleceu, não causa um mal. Na elaboração do luto em si, ela estaria se fazendo bem".
De acordo com a especialista, existem três grandes tipos de luto: o antecipado (que a pessoa vivencia sem ter acontecido, tem medo que aconteça), o negado (que a pessoa sofre, mas evita falar e pode gerar um grau de sofrimento grande ou doença a médio e longo prazo) e o complicado (que é quando você, por alguma razão, precisa pular uma etapa do processo de luto, como tem acontecido nessa pandemia, onde não é possível fazer velório e as pessoas acabam não se despedindo de fato de alguém).
Essa necessidade de conversar com quem partiu é uma forma de externalizar os sentimentos, evitando o luto negado. Ao evitá-lo, a pessoa está se preservando para não desenvolver uma doença psicossomática, por exemplo".
Respeito e readaptação fazem parte do processo de luto
Apenas quem recorre a estes recursos pode saber o quão bem (ou mal) isso pode fazer. E também só cabe ao enlutado decidir a hora de parar (ou seguir). Para os que convivem com ele, a orientação é uma só: respeitar. "Independentemente de incentivar ou não a atitude do enlutado, as pessoas que convivem com ele devem oferecer uma parceria incondicional. É dizer 'estou aqui' e esse 'estou aqui' engloba solicitude, companhia e acolhimento, e não julgamento. É não interferir dizendo 'não vai ler, não vai fazer, não vai mandar mensagem'. Esse tipo de postura é desrespeitosa e anti-humana", comenta Samu.
Para Kovács, é ideal que o enlutado sempre possa falar das suas necessidades e buscar ajuda quando achar necessário. E não só ajuda profissional, ajuda entre amigos, familiares e pessoas queridas. Que coloque o foco muito em si, em seu processo, sem pensar se está certo ou errado. "O mais importante é que possa viver de maneira que se sinta menos mal, porque sentir-se bem, talvez, seja difícil. No luto, a gente tem de lidar com a perda, com tudo que significa não estar com a pessoa, com sentimentos, dúvidas, questões, com aquilo que não foi falado e precisaria ter sido, como é estar sem a pessoa, como é lidar com a perda".
Outra tarefa importante, ainda segundo Kovács, é a readaptação da vida sem a pessoa querida. Como vai ser o dia a dia, como é acordar de manhã e não falar bom dia sem ter a pessoa ao lado, como é realizar as atividades cotidianas, fazer aquelas coisas que a pessoa fazia e agora não faz mais e o enlutado tem de fazer. "No meio da dor, importante é buscar aquilo que te faz bem, que a pessoa sente que é melhor para ela e muito importante é ela poder falar sobre isso, ter legitimação dos sentimentos e não ficarem falando o que ela deve ou não fazer, se deve chorar ou não, se agora ela deve sair ou ficar em casa, ou se fica mais tempo na cama. O que pode amenizar a dor é saber que tem pessoas por perto e ela pode contar com elas e falar o que está sentindo".
Para Nathalie Gomes, também ameniza a dor saber que nem de longe a perda da irmã significou o fim. "Eu sinto de uma forma muito forte que não acabou. Então, por mais que eu entenda que no céu não tem Wi-Fi, também sinto que a linguagem do amor, de uma forma ou de outra, chega até ela. Eu uso o post para organizar as ideias, para essa mensagem de amor chegar mais bonita. Ela pode não ler pelo Facebook ou pelo Instagram, mas ela recebe. Eu tenho certeza".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.