Profissionais de saúde relatam casos de assédio; como fica a saúde mental?
"Abaixa a máscara para eu ver esse sorriso lindo?". A frase faz parte de uma publicação da médica Flávia Brito no Twitter que, em poucas horas, viralizou. Diversas mulheres, principalmente da área da saúde, incluíram seus relatos com situações parecidas, envolvendo o assédio por parte dos homens.
Em entrevista ao VivaBem, a ortopedista disse que estava sozinha com o paciente, que já fazia diversos elogios a ela. "Ele elogiou minha letra, achei simpático e agradeci —até pelo estigma que os médicos têm. Depois, ele brincou sobre meu carimbo ser de diamante por ter strass nele."
Em seguida, o paciente perguntou se poderia pedir uma coisa à médica. "Achei que ia solicitar um atestado e já fui fazendo. Mas ele pediu para eu tirar a máscara para ver 'meu sorriso lindo'", conta. "Fiquei sem reação por alguns segundos, até entender tudo. Me levantei e fui abrindo a porta para ele se levantar logo e sair. Me senti muito desrespeitada."
O que elas pensam sobre o uso da máscara
Apesar do ocorrido, a médica diz que o uso obrigatório da máscara, principalmente em ambientes hospitalares, diminuiu a quantidade de assédios de uma forma geral. "Ainda continua acontecendo de chamarem de 'meu anjo', 'mocinha', e até elogiarem alguma característica, mas os assédios nos atendimentos diminuíram."
Paula Arieta Crivelli, médica do interior de São Paulo, também concorda. "Mas agora é mais desconfortável quando acontece, pois geralmente há questionamentos para retirar a máscara para ver se 'eu sou bonita mesmo'", conta. "Quando isso acontece, me sinto extremamente desrespeitada e invadida, além de irritada pela pessoa ter ignorado o fato de que a nossa proteção é a máscara."
Já a nutricionista de Macaé (RJ) Ana Carolina Costa vê esse tema de outro ângulo: "Percebo que o uso de máscara acentuou os olhares para o corpo e as frases sem noção ganharam novas roupagens".
Assédio na área da saúde
Para além do uso da máscara, o assédio sexual por parte dos pacientes não parece ser um caso isolado. VivaBem reuniu relatos de profissionais de saúde —algumas já citadas acima — para contar como essa prática é, infelizmente, muito comum, mesmo antes da pandemia.
"Embrulhada assim já é linda, imagine descascada"
Luciana Araujo, 37, farmacêutica em um hospital de Brasília (DF)
"Trabalhava em uma drogaria no bairro Lago Sul. Era meu segundo emprego depois de formada, ainda estava em período de experiência.
Já havia sofrido assédio no emprego anterior, só que com o gerente da loja. Quando sofri esse novo assédio, de um cliente, foi a gota d'água para mim. Um senhor virou e falou 'embrulhada assim já é linda (pegou no meu jaleco), imagine descascada'. Os balconistas riram e o gerente fez de conta que nada viu.
Por causa do assédio anterior, desenvolvi transtorno de ansiedade generalizada e fiquei calada. Daquela vez, o assédio sexual virou assédio moral e perdurou por muito tempo, até que um dia não aguentei e fui no RH prestar uma queixa. Eles insinuaram que eu queria alguma coisa com o gerente. Diante disso, pedi para os donos me demitirem e entramos em um acordo.
Por essa péssima experiência anterior, não procurei o RH desta vez. Só avisei que não ia querer renovar o contrato e me desliguei. Fiquei anos sem emprego. Não conseguia nem imaginar trabalhar em uma drogaria novamente."
"Paciente estava nu e me chamava de linda"
Flávia Brito, 32, ortopedista no interior de São Paulo
"Na residência de ortopedia, eu passava para ver os pacientes internados todos os dias pela manhã. Por dois dias seguidos, um rapaz internado me chamava de linda, mesmo eu corrigindo todas as vezes.
No terceiro dia, ele estava nu debaixo do lençol e quando me viu chegando, sentou. Da porta eu percebi e disse a ele que passaria mais tarde. Então, o paciente falou que tinha se preparado para me receber e me chamou de linda novamente —num tom que me deu nojo.
Neste caso, escrevi no prontuário e disse aos meus chefes que não passaria mais lá. As enfermeiras também contaram que ele agia da mesma forma, fazendo brincadeiras a respeito de banho, pedindo ajuda para lavar as partes íntimas.
Meu chefe teve uma conversa com ele e ameaçou que chamaria a polícia. Então, ele pediu desculpas, mas não passei mais perto."
"Paciente sempre me convidada para jantar"
Renata Diniz, 34, dermatologista em São Paulo
"Ele ia na clínica uma vez ao mês mais ou menos. Era mais velho, muito bem de grana e casado. Todo final da consulta esse paciente me chamava para jantar. Sentia que ele se colocava nesse lugar de ser um homem mais velho e rico dando em cima de uma médica mais nova. Ele sabia como agir.
Me sentia acuada, ofendida e desrespeitada na minha atuação como médica. Ao mesmo tempo que não era algo 'violento' e 'agressivo', era muito desconfortável, principalmente por ser em um ambiente de trabalho.
Mas como era uma clínica com os donos por perto, eu não podia ser agressiva na resposta. Acredito que, se ocorresse hoje, eu seria muito mais incisiva do que fui na época, em 2016."
"Vou adorar 'tomar um chá' seu"
Ana Carolina Costa, 24, nutricionista em Macaé (RJ)
"Estava em um contexto profissional, uma vídeochamada. Conversávamos sobre uma das dúvidas apresentadas pelo paciente: distensão abdominal após refeições.
Expliquei algumas estratégias nutricionais que podem ser aplicadas, citei alguns chás (infusão) e disse que seriam inseridos no plano alimentar. Até que fui surpreendida com 'nossa, vou adorar tomar seu chá' com uma entonação extremamente maliciosa.
Me senti constrangida, mas assumi, mentalmente, a culpa: 'Devo ter falado algo errado e não me fiz entender'. Retomei a razão e pensei: 'Opa, a culpa não é minha, estou apenas fazendo meu trabalho'.
De qualquer forma, aquela frase me deixou abalada, uma vez que a relação profissional da saúde-paciente foi quebrada. Me senti reduzida a algo de teor exclusivamente sexual.
Sou autônoma e não tive a quem recorrer. Na verdade, até repensei minha prática profissional, em maneiras de limitar algumas palavras —sendo que o problema nunca foi o meu comportamento. Fui a vítima."
Consequências na saúde mental
Em primeiro lugar, a mulher que sofreu um assédio sexual começa a duvidar de si mesma por conta da ideia machista de que "se fui assediada, fiz algo para merecer isso", segundo Ângela Figueiredo, mestre e doutora em psicologia clínica pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). "Depois, fazemos algo que se chama de invalidação emocional, que é invalidar o que a gente sente como se estivéssemos erradas."
Entre as principais consequências mentais desse assédio estão os transtornos de ansiedade —que se dividem em TAG (transtorno de ansiedade generalizada), transtorno de pânico e fobia social — e a síndrome de burnout.
De acordo com a psicóloga, profissionais de saúde podem sofrer mais com as consequências de um assédio. "Além de questionar o que fez como mulher, ela também questiona o que fez como profissional para ter dado espaço ao assédio", diz. Na visão dela, a área da saúde possui muitas chefias masculinas, o que também dificulta o processo todo.
Figueiredo explica que o ideal é que essa mulher procure ajuda de um profissional de saúde mental, seja psicólogo ou psiquiatra. "A primeira parte do tratamento psicológico é colocar a responsabilidade no lugar certo: no assediador".
O que diz a lei
Assédio sexual e moral no ambiente de trabalho são tipificados como crime no Código Penal brasileiro. O primeiro é o ato de constranger alguém com finalidade de obter vantagem sexual (art. 216-A). O segundo (art. 146-A) envolve a desqualificação reiterada de uma pessoa —por palavras, gestos ou atitudes — no ambiente de trabalho.
"No caso de profissionais de saúde que sofrem com abusos físicos ou verbais de superiores, colegas ou pacientes, ambas as legislações pode ser aplicada", explica Yasmin Curzi de Mendonça, advogada e pesquisadora do CTS/FGV Direito Rio.
Do ponto de vista legal, a mulher vítima de violência pode recorrer em qualquer delegacia, não só na DEAM (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher), para fazer queixa. Há ainda o canal gratuito de denúncia para as mulheres, o 180.
A vítima também pode levar o caso ao RH da empresa, com provas e até testemunhas, se for o caso. "O empregador pode ser responsabilizado legalmente também, se não propiciar um ambiente seguro para os trabalhadores (art. 157, I, CLT) e, portanto, a vítima poderia também demandar reparações no âmbito da justiça trabalhista, caso não tenha contado com o apoio necessário do RH de sua empresa", diz.
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