Tem o hábito de cutucar demais a pele? Entenda o que pode estar por trás
Quando tinha entre 12 e 13 anos, a produtora de moda carioca Renata Feitosa, hoje com 26 anos, começou a sofrer com acne. Na tentativa de se livrar do incômodo, a "saída" que encontrou foi cutucar a pele —primeiro o rosto, depois, os braços e as costas—, e aos poucos, sem que se desse conta, isso virou um hábito ou um vício, como ela define.
Alguns anos mais tarde, a jovem foi diagnosticada com dermatilomania (também conhecida como transtorno de escoriação, dermatotilexomania e skin picking), um distúrbio psiquiátrico caracterizado justamente pelo ato de coçar, mexer, puxar, esfregar, espremer, cavar, arranhar, apertar etc. repetidamente a pele, com ou sem uma lesão primária, e de qualquer parte do corpo.
"Sou bastante ansiosa e mexer nas espinhas acabou se tornando uma válvula de escape, uma forma de eu me acalmar. Tenho consciência de que é prejudicial, e depois que faço fico mal, me sinto culpada, frustrada, mas é algo que não consigo controlar, especialmente nos dias de mais estresse", revela Renata.
Condição prevalente e negligenciada
A dermatilomania foi reconhecida como distúrbio somente em 2013 e, desde então, consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, elaborado pela APA (American Psychiatric Association ou Associação Americana de Psiquiatria).
Apesar de pouco falada, é uma condição que tem alta prevalência global.
"É comum, mas bastante negligenciada. Estima-se que afete cerca de 3% a 5% da população, só que apenas 50% recebem o diagnóstico, primeiro porque as pessoas ainda têm vergonha de procurar ajuda psiquiátrica e, segundo, por desconhecimento dos próprios médicos", comenta Alice Xavier, psiquiatra e pesquisadora do Protan (Programa de Atendimento a Transtornos de Ansiedade) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
De acordo com a médica, que também faz parte do projeto SOSkin, voltado para ajudar quem sofre com o transtorno de escoriação, até hoje não se sabe exatamente quais são as suas causas, já que faltam estudos.
Por enquanto, o que se tem de informação é que ele está associado a outros quadros emocionais, sobretudo ansiedade e depressão, e é muito parecido com o TOC (transtorno obsessivo-compulsivo).
"O ato de mexer na pele é comum a todos os indivíduos, e, geralmente, é desencadeado por coceira ou desejo de remover irregularidades, como espinhas, cravos, picadas de inseto, cutícula e casquinhas de machucados. Mas algumas pessoas acabam tendo esse comportamento de forma prejudicial e disfuncional, e mesmo quando a pele está sadia. No caso delas, vira uma mania, algo repetitivo, prejudicial e que pode ser realizado de forma automática, sem que se deem conta, ou consciente", relata Xavier.
Márcia dos Santos Senra, dermatologista e coordenadora do Departamento de Psicodermatologia da SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia), explica que o skin picking também faz parte da classificação das doenças psicodermatológicas, que relacionam a pele e o cérebro.
"Há uma forte ligação entre o maior órgão do corpo e o sistema nervoso. Isso porque eles têm a mesma origem, vêm do mesmo folheto embrionário, que é o ectoderma (a camada externa do embrião). Na dermatologia, cerca de 30% dos pacientes apresentam alguma questão de ordem emocional com manifestação cutânea", aponta.
No caso específico da dermatotilexomania, a especialista diz que ansiedade, tristeza, raiva e estresse, entre outros sentimentos, emoções e sensações, são os gatilhos.
"Eles provocam impulsos e pensamentos intrusivos. A partir daí, o paciente encontra no ato de escoriar a pele o mecanismo para aliviar o desconforto emocional que sente. O problema é que quanto mais escoriações ele tem, mais vai querer mexer, cutucar, coçar... E isso se torna um ciclo vicioso."
Problema atinge mais adolescentes e mulheres
A maioria dos indivíduos diagnosticados com dermatilomania é do sexo feminino (cerca de 80%) e, no geral, a sua manifestação se dá na adolescência, mas também acontece de a pessoa desenvolver em outras fases, ao passar por momentos de elevada dor emocional, como agora, na pandemia.
Qualquer região do corpo pode ser alvo, porém, as mais comuns são o rosto e o couro cabeludo, por serem as mais enervadas. O grau do transtorno varia, indo de leve a intenso.
Nos mais elevados, além de pequenas marcas e manchas na pele, o paciente corre o risco de ter lesões graves, que deixam cicatrizes profundas e até resultam em desfiguração e complicações, como infecções e úlceras.
E há casos que tendem a ser ainda piores. Isso porque, muitas vezes, quem sofre com o problema não usa apenas as mãos para se cutucar, mas também objetos, como tesoura, pinça e agulha.
"O skin picking é uma manifestação externa de um sofrimento interno. Seja para liberação de estresse e ansiedade ou por uma questão de fundo psicótico, a pessoa elege a pele como escape, e isso é algo que traz muito desconforto. Junto com a culpa e a frustração, vem a baixa autoestima, devido aos danos visíveis causados, e as mudanças no comportamento. Quase sempre o paciente passa a esconder as áreas afetadas e se torna mais introspectivo e recluso", avalia Maria do Carmo Araújo Palmeira Queiroz, dermatologista do Hospital Universitário Onofre Lopes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Renata conta que foi exatamente o que aconteceu com ela: "Já deixei de fazer várias coisas, usar alguns tipos de roupas e até de me relacionar com os colegas por vergonha. Também sempre passei muita maquiagem no rosto. Não queria que vissem a minha pele, as marcas, e ficassem comentando".
Tratamento deve ser feito com equipe multidisciplinar
Pelo fato de a dermatilomania ter manifestações cutâneas, mesmo não sendo uma doença de pele, normalmente, o primeiro médico que as pessoas procuram é o dermatologista, mas o ideal é que o caso seja conduzido por uma equipe multidisciplinar, composta por esse especialista junto com psiquiatra e psicólogo. O objetivo é tratar o paciente de forma integrada.
Segundo Xavier, para o correto diagnóstico, antes de mais nada, é preciso excluir outros quadros —tanto dermatológicos (como urticária) quanto psiquiátricos (como psicose)—, que podem ser confundidos. Confirmado o transtorno, o tratamento deve ser iniciado o quanto antes.
"O que tem os melhores resultados é a terapia cognitivo comportamental baseada em técnicas de reversão de hábito. Ela é fundamental para entendermos o que está por trás e mudar o padrão de conduta. Em algumas situações, medicamentos como antidepressivos e ansiolíticos também são necessários, mas eles sozinhos não são tão eficientes", afirma.
Outra indicação é buscar ferramentas que ajudem a ter um maior controle sobre as emoções e os impulsos. Por exemplo: meditação, mindfulness e respiração consciente.
Também vale apostar em estratégias que dificultem a prática de lesionar a pele, tais como o uso de luvas ou esparadrapos nas pontas dos dedos, a colocação de curativos nos machucados, a aplicação de cremes e pomadas nos locais e a manutenção das unhas curtas e lixadas.
Ao mesmo tempo, é fundamental cuidar da pele, evitando ou melhorando as lesões que porventura possam ser alvo das escoriações —e as que surgiram em decorrência do transtorno— e tratando as doenças que causam irregularidade cutâneas (acne, psoríase, dermatite seborreica, líquen plano pilar, dermatite atópica e ceratose pilar são algumas) e acabam estimulando o hábito.
"Junto a isso tudo, é imprescindível a ajuda de quem está no entorno. O paciente precisa se sentir acolhido e confortado, e não ser punido ou julgado. Para que efetivamente melhore, os parentes e os amigos têm de entender que ele está enfrentando um problema, está sofrendo e necessita de cuidados", finaliza Lopes.
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