Pai entra na Justiça para obter vacina contra covid à filha com doença rara
O pai de uma menina de 4 anos, que tem uma doença rara, entrou na Justiça de São Paulo para obter a vacina contra covid-19 para a filha. Neste momento, ainda não há a inclusão de menores de 18 anos no PNI (Programa Nacional de Imunizações), apesar de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ter autorizado a vacina da Pfizer para adolescentes a partir de 12 anos.
Segundo José César Rosa Neto, 39, a condição rara da filha —chamada de LCHAD — a deixa vulnerável para ter um quadro mais grave de covid-19, caso seja infectada pelo vírus. Ao encontrar um artigo sobre o tema, ele começou a ficar mais preocupado com a saúde de Manu*. Todos os dias, o professor universitário de biologia lê estudos científicos sobre a LCHAD para ver se há alguma novidade.
"Em junho de 2020, me deparei com um estudo de caso de uma moça de 23 anos, nos Estados Unidos, que tinha a LCHAD e morreu após ter covid-19 (...). Como ainda não tinha vacina, resolvemos nos manter isolados e acompanhar a evolução da vacinação", explica.
Em março deste ano, quando a Sinovac Biotech —que produz a CoronaVac — anunciou o primeiro resultado do estudo clínico em crianças, o professor foi buscar mais dados na literatura. "Eles mostravam que a CoronaVac era muito segura para crianças nesse estudo e tinha eficácia. Na verdade, as crianças produziam muito mais anticorpos que adultos. Com isso, resolvemos entrar na Justiça na primeira instância", conta.
O argumento de Neto é a condição da filha, porque a LCHAD afeta o metabolismo da menina. "Ela não tem enzimas que são capazes de usar a gordura —estocada ou por meio da alimentação — como fonte energética. Então, ela tem várias restrições: não pode ficar mais de 3 horas sem comer, por exemplo", diz.
Por causa dessa condição, Manu usa uma sonda acoplada na barriga para seguir dormindo enquanto é alimentada. De acordo com o pai, ela foi diagnosticada aos 4 meses após um episódio grave de hipoglicemia —baixa concentração de glicose (açúcar) no sangue.
"Corremos ao hospital e ela foi internada. Investigamos e, após uma semana, ela teve alta e voltou para a casa", diz. "Depois de mais uma semana, ela apresentou um quadro semelhante e voltamos ao hospital. Demoraram muito para pegar o acesso dela, entre 6h e 7h, e aí ela teve a primeira parada cardíaca."
Segundo Neto, ela teve três paradas cardíacas no total. Quando resolveram fazer o teste do pézinho ampliado, foi detectada a alteração no metabolismo e os médicos descobriram a mutação após o sequenciamento genético.
Com todos os cuidados citados, Manu leva uma vida normal e não teve nenhum déficit cognitivo após os episódios de parada cardíaca. "O problema maior são as infecções virais, porque há um aumento natural do gasto energético para combater a infecção. E ela não dá conta de repor tudo isso sozinha pela alimentação. Isso desequilibra o portador de LCHAD. Com isso, precisamos levá-la ao hospital para mantê-la bem", afirma.
Pedido recusado na Justiça
Foi por todos esses motivos que o pai resolveu ingressar com o pedido na Justiça. De acordo com ele, de março a junho, a batalha foi travada. "O promotor pediu que a gente comprovasse a segurança e eficácia [da vacina], mas concordou na primeira vez com o artigo que colocamos, além de outras questões científicas, que a Manu seria uma criança com grande vulnerabilidade", explica.
Depois, a juíza que acompanhava o caso pediu mais informações e a família conseguiu o pré-print do artigo, que, nesta semana, foi publicado oficialmente no periódico científico The Lancet. "Isso ainda em junho. Eu anexei a publicação, grifei os pontos importantes, fiz a tradução e mandamos."
Neto explica que o promotor mudou completamente a tese de que era necessário mostrar a segurança e eficácia da CoronaVac em crianças. "Ele disse que não poderia dar a vacina para a Manu porque atrapalharia o PNI".
Mas a juíza deferiu o pedido de liminar, ou seja, reconheceu o pedido feito pelo pai, por acreditar que havia evidências de que a LCHAD inclui um risco maior de morte, caso ocorra a infecção por covid-19. "A decisão foi publicada no dia 16 de junho, à tarde, mas no dia 18 de junho recebemos a notícia que a liminar havia sido suspensa de maneira monocrática [decisão de apenas um magistrado] pelo Tribunal de Justiça de São Paulo."
Agora, Neto explica que a situação está mais difícil, pois teria que recorrer à Brasília e a espera será longa. "A gente não sabe se depois dos 18 anos vão diminuir a idade para as crianças e se vai ser, primeiro, as com comorbidades ou não. A gente não tem nem previsão", diz. "A gente vê o Gonzalo Vecina dizendo que a partir de agosto todas as crianças sem comorbidades deveriam voltar para a escola, e até lá o que fazemos com a Manu? Ela fica fora da sociedade?".
Junto ao advogado, eles entraram com um embargo de declaração tentando mostrar que havia inconsistência jurídica, mas o pai não tem muitas esperanças. Ele também criou uma página no Instagram para discutir sobre o tema. Até ter algum retorno, vive a angústia por não ter respostas para a filha.
Depois de comemorar a chegada da vacina aos país, Manu pergunta quando será sua vez. "Ela começou a questionar a data e nós falamos que não sabemos. Aí ela contou que iria pedir ao Papai Noel a dose de vacina. É esse nível emocional que temos de vivenciar durante a pandemia", lamenta.
É preciso cautela, segundo médico
Segundo Renato Kfouri, infectologista e presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), o ideal seria que "todo mundo já estivesse vacinado", mas que nesse momento é preciso priorizar os grupos que estão tendo casos mais graves de covid-19 ou com maior número de óbitos.
"Crianças e adolescentes, menores de 20 anos, correspondem a 1,4% das hospitalizações por covid e 0,3% de óbitos. Neste ano, foram 800 óbitos [na faixa etária] e quase metade, ou 43%, tinha alguma doença crônica", explica. "Por isso que não há nenhuma priorização. Mas, de novo, é claro que todo mundo já deveria estar vacinado. Então, estamos avaliando no programa os riscos de adoecimento por covid e o risco da vacinação também", diz.
O médico cita os casos de miocardites envolvendo a vacina da Pfizer e de trombose com a vacina da AstraZeneca. Em populações onde o risco de adoecer e morrer é mais alto —como no caso dos idosos, no início da pandemia —, vale a pena "correr os riscos", segundo Kfouri. Mas em grupos nos quais a doença tem menos chances de ficar grave, como as crianças e adolescentes, é preciso mais cautela.
"Às vezes, faremos mais mal com a vacina do que bem. Mesmo crianças com doenças crônicas ou raras, o risco da vacina pode ser maior. Então, não é que queremos mal para elas, pelo contrário, queremos apenas fazer algo com segurança", explica Kfouri.
De acordo com o infectologista, o que falta são mais dados para "estabelecer melhor os riscos da covid grave nas crianças e adolescentes com ou sem comorbidade". Outro exemplo citado por ele é separar esse grupo por doenças (diabetes, obesidade, por exemplo), e também por idade. "Precisamos de cautela neste momento, e não de precipitações", diz.
* O nome foi alterado a pedido do pai.
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