Que tratamentos infantis e traumáticos dos anos 80 e 90 evoluíram?
Senta que lá vem história. Se você é da época que passava na TV "Pica-Pau e Zeca Urubu", "Alf, O ETeimoso", "Pepe Le Gambá" e eram vendidos como brinquedos os bonecos Baby, de "A Família Dinossauros", ou os polêmicos Fofão e Xuxa, saiba que é um sobrevivente.
Isso porque nos idos do "Carrossel das Américas" (você talvez nem saiba o que é isso, mas é o primeiro Carrossel, lá dos anos 1990), crianças não só fumavam, segundo afirmou Gabriela Rivero, a professora Helena em entrevista de 2016 sobre seus "alunos", como eram muitos os tratamentos infantis —das mais variadas áreas médicas— perigosos e traumáticos.
Para começar, era comum se chegar ao mundo por meio de uma técnica violenta utilizada no parto e desenvolvida na Alemanha em 1867. Assim, a criança era quase expulsa do ventre.
Depois, nos primeiros anos, havendo suspeitas no seu andar, era calçada com uma bota dura e pesada que aumentava o risco de quedas e machucados —inclusive nas canelas dos adultos.
Se não quisesse comer, os pais poderiam recorrer a indutores de apetite com álcool em sua composição. Agora, se a questão fossem suas notas ruins na escola por dificuldade de leitura, desatenção, geralmente terminava isolada das demais crianças e era submetida a "curas" humilhantes.
Início sem muita humanização
Felizmente, estamos evoluindo! De acordo com Fernando Oliveira, pediatra e coordenador da emergência pediátrica do Hospital Esperança Recife, a manobra de Kristeller, que consiste em pressionar a parte superior do útero da mulher, com o objetivo de acelerar a saída do bebê, atualmente é proibida em vários países e quase já não é utilizada nas maternidades do Brasil.
Com ela, o nascimento em vez de humanizado como é hoje, era marcado por hematomas encefálicos, fraturas de clavícula e crânio e outros efeitos que a criança poderia apresentar ao longo de seu desenvolvimento, como convulsões, devido ao trauma no parto.
"O fórceps [instrumento cirúrgico 'em pinça' utilizado no parto para facilitar a passagem da cabeça do bebê pelo canal da vagina], continua, mas não é mais rotina e as crianças também não ficam mais sozinhas nas UTIs infantis e pediatrias como antes", complementa Oliveira.
Nelson Douglas Ejzenbaum, pediatra e neonatologista membro da Academia Americana de Pediatria, lembra que nos 80 e 90 as mães também tinham "aval" para tratar umbigo estufado de bebês com aplicação de moedas, botões ou faixas.
"Não só não resolvia, como contaminava, feria, impedia a circulação e as asfixiava se engolissem. A hérnia umbilical se fecha com a aproximação dos músculos da barriga e em 99% dos casos até os dois anos de idade, de forma natural", diz.
Os dois pediatras concordam ainda que décadas atrás havia muita propaganda de fórmulas lácteas, que em comparação com as atuais engordavam mais, podiam sobrecarregar os rins da criançada e eram menos completas e nutritivas.
O aleitamento materno também não era tão aceito e aderido como hoje, afetando o desenvolvimento e o vínculo afetivo entre mãe e filho.
Botas e "freio de burro" em desuso?
Não que os pais da geração Bon Jovi, Cyndi Lauper e George Michael fossem levianos, a forma de pensar da sociedade é que era diferente, assim como o repertório médico e científico. Se os tratamentos de 30, 40 anos atrás impressionam quando analisados sob a perspectiva de hoje, o que dirá dos aplicados há 60, 80, 100 anos? O mesmo ocorrerá com os em voga atualmente.
Entre o que ficou para trás, ou no mínimo hoje é controverso, estão as convencionais botas ortopédicas, que submetidas aos estudos mais atuais sugere-se terem pouca eficácia e atrapalham o desenvolvimento da coordenação motora e o equilíbrio das crianças.
"Foi visto que o uso dessas botas não traz benefício no futuro. Hoje temos cirurgias avançadas que corrigem deformidades quando necessário e a grande maioria nem precisa", comenta Oliveira, com o apoio de Ejzenbaum: "Pelos próprios movimentos, os pés com pequenas alterações se acertam e a gente estimula isso fazendo a criança andar sobre a terra ou areia".
Lembra também daquele aparelho "freio de burro", que mais parece instrumento de tortura? Chamado extrabucal, ele serve para estimular, restringir ou redirecionar o crescimento de alguns ossos da face, como maxila e mandíbula, evitando a necessidade de cirurgias futuras.
"Funciona bem, mas tem sido menos empregado devido ao surgimento de alternativas mais modernas, confortáveis e esteticamente melhores, como os alinhadores invisíveis", aponta Guilherme Lopes, cirurgião-dentista especialista em ortodontia da Clínica Ita, em Salvador, acrescentando que com a evolução da ortodontia e compreensão dos danos causados pelo bullying, caíram bastante em desuso também aqueles "anéis" metálicos de aparelho fixo.
Sem ardência, intoxicação e preconceitos
Em se tratando de fórmulas medicamentosas, as revisões também não foram poucas. Seria impossível listar todas, mas entre as mais marcantes aparece a do Merthiolate, que a partir de 2001 foi proibido pelo Ministério da Saúde de conter os componentes tóxicos timerosal e mercúrio, além de álcool, que era responsável pela ardência característica do produto.
O álcool também foi banido no mesmo ano do fortificante Biotônico Fontoura, que para "abrir" o apetite chegou a ter um teor de cerca de 9,5%, equivalente ao de algumas cervejas de 600 ml.
Para tratar dor de garganta, álcool também é ineficaz, então não passe adiante o hábito herdado de embeber lenços nele e depois os enrolar no pescoço. Pode aliviar por um tempo, mas é perigoso, pois causa irritação, queimadura e até sufocamento e intoxicação.
E o que dizer da combinação álcool e pente fino contra piolho? "Igualmente sem nenhum efeito positivo, além de desidratar a pele e os cabelos. Dentre os tratamentos para remoção de piolhos, o recomendado é lavar a cabeça com xampu de permetrina e aí, sim, usar depois pente fino para remover as lêndeas", esclarece Patrícia Marañon Terrivel, pediatra humanizada pelo Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, em São Paulo, e conselheira do Trasmontano Saúde.
Os médicos também contraindicam pingar óleo ou azeite quentes no ouvido para desentupi-lo, pois podem queimar severamente a membrana do canal auditivo e comprometer a audição, bem como o antigo receituário de AAS (ácido acetilsalicílico) ou melhoral para crianças com febre.
Diferente do passado, hoje se sabe que há risco de intoxicação grave e até letal se elas estiverem com infecção viral. Para reduzir a temperatura é preferível dar dipirona.
E, por último, mas não menos importantes como outrora percebidas, a psiquiatria e a psicologia também deram uma reviravolta.
"Eram malvistas, os pais 'fugiam' de nós e nem se reuniam em grupos de apoio mútuo como hoje por conta de vergonha e estigma de loucura que havia a respeito de seus filhos com autismo, esquizofrenia", recorda Wimer Bottura Junior, psiquiatra infantil pelo Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Ele continua que déficit de atenção, hiperatividade e dislexia também envolviam tratamentos punitivos, segmentados e nada inclusivos.
"Às vezes, a criança deixava a escola, era retida e até levava copo de água fria para ver se 'acordava' para a vida. Mas os conceitos mudaram, assim como exames, diagnósticos, medicações e hoje os pais estão mais presentes, informados e amparados por equipes multidisciplinares. Aceitarem seus filhos já é um progresso", finaliza.
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