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Estudos inéditos testam ayahuasca para tratar abuso de álcool e depressão

Estudos têm caráter experimental e preliminar; ayahuasca não é aprovada para o tratamento da depressão - Natalia Plankina/Getty Images/iStockphoto
Estudos têm caráter experimental e preliminar; ayahuasca não é aprovada para o tratamento da depressão Imagem: Natalia Plankina/Getty Images/iStockphoto

Carlos Minuano

Colaboração para o VivaBem

24/09/2021 04h00

Dois novos experimentos irão testar a eficácia terapêutica da bebida psicodélica ayahuasca para problemas de saúde mental. Já em andamento, os estudos vão avaliar os benefícios nos tratamentos de abuso de álcool por universitários e para TDM (transtorno depressivo maior).

Trata-se do primeiro estudo com ayahuasca, e psicodélicos em geral, randomizado e controlado com placebo para abuso de álcool e por universitários em particular, explica Rafael Guimarães dos Santos, neurocientista da FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) da USP (Universidade de São Paulo), responsável pelas pesquisas.

"Os últimos [estudos] foram com LSD nos anos 1960-70, e os modernos com psilocibina não têm placebo", acrescenta o neurocientista.
No caso da pesquisa sobre o potencial antidepressivo da ayahuasca, o especialista destaca que o estudo fará uma comparação direta com o anestésico psicodélico cetamina por via oral e com placebo, por meio de doses repetidas.

"Nunca se testou o efeito antidepressivo da ayahuasca com mais de uma dose", destaca Santos. Os dois novos estudos conduzidos por pesquisadores do Laboratório de Psicofarmacologia da FMRP já estão em andamento, mas permanecem abertos para a participação de voluntários que morem na região.

O estudo que irá avaliar o uso da ayahuasca para diminuição do consumo de álcool deve ir até 2022. Os participantes devem ser universitários, ter 18 anos ou mais e fazer consumo de álcool de forma abusiva. "Sabemos que a população adulta jovem é a que mais consome álcool, especialmente a universitária", comenta o pesquisador sobre o estudo pioneiro, que irá testar a hipótese de redução do consumo após uso da ayahuasca, comparado com placebo.

Na pesquisa para depressão, que segue até 2024, os interessados devem ter 18 anos ou mais, diagnóstico de TDM e bom estado geral de saúde. O TDM é o tipo de depressão mais comum e os números de casos aumentaram durante a pandemia da covid-19. "Os tratamentos farmacológicos atuais costumam demorar de semanas a meses para fazer efeito e não ajudam cerca de um terço dos pacientes", avalia Santos.

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Os estudos vão avaliar os benefícios nos tratamentos de abuso de álcool por universitários e para TDM (transtorno depressivo maior)
Imagem: iStock

Por que usar ayahuasca e cetamina?

A ayahuasca é preparada com folhas de um arbusto chamado chacrona (Psychotria viridis) e um cipó conhecido como jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi), duas plantas amazônicas.

A beberagem é usada há milhares de anos por dezenas de povos indígenas na Amazônia e há décadas por cultos religiosos brasileiros, como Santo Daime, União do Vegetal, Barquinha e Alto Santo.

Os efeitos psicodélicos da ayahuasca são causados pela DMT (dimetiltriptamina), presente nas folhas da chacrona. Mas o neurocientista Rafael Santos explica que o cipó é fundamental no processo. Sem ele, nada aconteceria. "O cipó possui beta-carbolinas que inibem a degradação da DMT das folhas do arbusto, permitindo que essa substância chegue ao cérebro".

A ayahuasca estimula receptores de serotonina chamados 5-HT2A, localizados em regiões do cérebro envolvidas no processamento das emoções, percepções e introspecção, explica o neurocientista.

Os efeitos subjetivos dessas substâncias incluem alterações nas emoções, que podem ir de bem-estar à ansiedade, percepções (maior sensibilidade aos sons e cores, e visões) e cognição (autoconsciência, memória). "São efeitos difíceis de explicar, mas seriam parecidos com sonhos lúcidos, ou estar consciente enquanto sonha", compara o pesquisador. Ao mesmo tempo, segundo ele, essas substâncias alteram o funcionamento de algumas áreas cerebrais envolvidas em transtornos psiquiátricos, como a depressão, podendo diminuir sintomas.

Entretanto, Santos ressalta o caráter experimental e preliminar dos estudos e lembra que a ayahuasca não é aprovada para o tratamento da depressão.

A outra substância utilizada no estudo para tratamento de depressão em Ribeirão Preto, o anestésico cetamina, é o único psicodélico já aprovado para uso médico no Brasil e que tem apresentado efeitos antidepressivos quando usado por via endovenosa e intranasal. Na pesquisa da FMRP, a administração será por via oral. "Nos dois casos [via endovenosa e intranasal] a aplicação é complexa, e existem poucos estudos avaliando o uso da via oral, que é mais fácil e seguro", observa Santos.

Já existem estudos com bebida amazônica

Não é de hoje que cientistas brasileiros investigam o potencial terapêutico da bebida amazônica. Os resultados mais promissores são para casos de depressão resistente a medicamentos.

O neurocientista Rafael Santos conta ter publicado o primeiro estudo controlado com placebo em pessoas saudáveis (integrantes do culto religioso Santo Daime) em 2007. "Mostramos que uma única dose de ayahuasca tinha efeito ansiolítico e antidepressivo".

O pesquisador também participou da análise e publicação de outros estudos de ayahuasca para depressão, realizados em parceria com o grupo do outro pioneiro nas pesquisas com a bebida psicodélica, o neurocientista Dráulio de Araújo, na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), em Natal.

Além disso, em parceria com a Fundação Iceers, em Barcelona, Santos participou de estudos observacionais sobre o uso da ayahuasca no Brasil e na Espanha, avaliando a saúde mental e a qualidade de vida de pessoas que fazem o uso ritual e religioso da ayahuasca.

Atualmente, Santos coordena, sob supervisão de Jaime Hallak, estudos com ayahuasca e ibogaína realizados no Laboratório de Psicofarmacologia do Departamento de Neurociências da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.

Ranking de estudos psicodélicos

O pesquisador Rafael Santos teve recentemente outro estudo com ayahuasca publicado em um artigo na revista especializada Journal of Clinical Psychopharmacology. A pesquisa apontou resultados promissores para tratamento de ansiedade e fobia social.

Ao lado de outros cientistas brasileiros, Santos foi citado em um ranking da produção científica mais relevante sobre psicodélicos, divulgado no início deste ano. O Brasil aparece em terceiro lugar, atrás dos EUA e do Reino Unido. O levantamento foi publicado no Journal of Psychoactive Drugs.

Um dos estudos destacados no ranking é um ensaio randomizado com controle de placebo que investiga os efeitos antidepressivos da ayahuasca em depressão resistente a tratamento. A pesquisa foi realizada pelo grupo liderado por Dráulio Araújo na UFRN.

O foco do pesquisador continua sendo a ayahuasca, mas ele admite a possibilidade de diversificar os estudos em breve. "Uma perspectiva é que a gente passe a conduzir ensaios com o DMT isolado". A ideia, segundo Araújo, é buscar um modelo mais adequado para a ciência, ou seja, usando uma única substância.

Chá de ayahuasca - iStock - iStock
A bebida tem substâncias que alteram o funcionamento de algumas áreas cerebrais envolvidas em transtornos psiquiátricos, como a depressão, podendo diminuir sintomas
Imagem: iStock

Novo coletivo de pesquisadores em SP

Pesquisar o potencial terapêutico da ayahuasca também está no radar de um novo coletivo de pesquisadores em São Paulo, formado por médicos, psiquiatras, paliativistas e oncologistas, do IPq (Instituto de Psiquiatria) da FMUSP (Faculdade de Medicina de São Paulo) e do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira).

O objetivo do grupo, chamado "Empírica", é estudar a aplicabilidade dos psicodélicos para a saúde mental. "A gente se reúne a cada 15 dias para discutir artigos científicos e novos projetos, como ensaios clínicos", conta o psiquiatra do IPq, André Brooking Negrão.

Mas, segundo o psiquiatra, antes da pesquisa com ayahuasca, o IPq vai testar outros dois psicodélicos. O primeiro estudo será com ibogaína para tratamento de dependência de crack e cocaína, previsto para iniciar em janeiro de 2022. Em seguida, o instituto fará um ensaio com cetamina para pacientes oncológicos terminais em parceria com o Icesp.