Brincar com outras crianças ajuda a desenvolver saúde mental e física
Toda criança precisa brincar. Este, inclusive, é um direito garantido por lei —consta, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos da Criança, da ONU (Organização das Nações Unidas), na Constituição Brasileira, no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e no Marco Legal da Primeira Infância. O fato é que a brincadeira é uma parte fundamental da aprendizagem e do desenvolvimento físico e mental dos pequenos, sobretudo quando é explorada com outras crianças.
Isso começa a acontecer por volta dos dois anos de idade. Antes, no geral, o universo dos pequenos se resume aos pais ou responsáveis, e é basicamente só com eles que interagem e brincam. Mas, a partir daí, quando entram na fase pré-escolar, seus mundos se expandem e a relação com os pares entra na equação, elevando significativamente os benefícios do brincar.
Roberto Santoro, coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), explica que o processo de desenvolvimento de meninos e meninas depende da troca com as pessoas.
"É apenas na interação e na ação que eles se desenvolvem e aprendem. A primeira infância (do zero aos seis anos) é o período em que o cérebro está em formação e ele é particularmente sensível às influências do ambiente."
Nesse contexto, as brincadeiras têm papel central, pois permitem que as crianças tenham novas experiências, adquiram habilidades e façam descobertas. A pediatra Ana Paula Scoleze Ferrer Barreto, coordenadora do Ambulatório de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento do ICr (Instituto da Criança) do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), pontua que, quando elas acontecem dentro de um contexto social, sendo realizadas com outras crianças, seus ganhos são muito maiores.
Com adulto a brincadeira não vale?
Segundo a médica, se divertir com os adultos tem muitas vantagens, principalmente do ponto de vista de segurança e transmissão de afeto, e jamais deve ser negligenciado. A questão é que, com eles, as atividades acontecem de forma mais estruturada e envolvem autoridade e limites, enquanto ao lado de quem tem a mesma idade se dá de forma mais livre.
"Com os pares, eles vão criar histórias, fantasiar, buscar soluções em conjunto, testar hipóteses, resolver problemas... É uma relação de igual para igual", avalia.
Benefícios reais do brincar
A lista de benefícios da brincadeira com outras crianças é enorme e envolve as mais diversas áreas do desenvolvimento, incluindo linguagem, meio social, emocional, cognitivo, intelectual, motor e físico.
Uma simples brincadeira de "casinha", por exemplo, estimula a criatividade e a imaginação, aprimora a linguagem e o vocabulário, constrói vínculos, favorece o raciocínio, a atenção, a memória e o foco e transmite valores e crenças.
No entanto, como aponta a pediatra, é do ponto de vista socioemocional que os ganhos são maiores. Eles incluem treinar autonomia e independência, testar limites, fortalecer empatia e resiliência, lidar com frustrações, organizar emoções, expressar vontades, controlar a impulsividade, aprender a dividir e a cooperar, lidar com as diferenças, resolver conflitos, desenvolver a capacidade de negociar e compreender regras.
"A partir da interação entre os pares, são trabalhadas as funções executivas, um conjunto de habilidades importantíssimas durante toda a vida e que têm total relação com o desempenho pessoal, acadêmico e profissional no curto, médio e longo prazos", aponta Barreto.
É preciso destacar que a brincadeira também promove ganhos físicos e motores, como diminuição do sedentarismo e suas consequências (obesidade e doenças decorrentes dela), coordenação, agilidade, equilíbrio, força muscular, integração sensório motora (sentidos) e noção de espaço. Fora isso, faz bem para a saúde mental, já que promove a liberação de neurotransmissores que promovem a sensação de bem-estar e diminuem o estresse.
"Muita coisa acontece em uma brincadeira, que, aos olhos de um adulto, pode parecer simples. Mas o neurodesenvolvimento é apoiado nas interações, ele precisa delas para que as sinapses e a organização das redes neurais ocorram. Dessa forma, quanto mais interação, mais a criança ganha habilidades e, quanto mais habilidades ela tem, mais isso melhora as suas relações", afirma a psicóloga Carla Alexandra Moita Minervino, professora do PPgNec (Programa de Pós-Graduação em Neurociência Cognitiva e Comportamental) e líder do grupo de estudos em Saúde Mental, Educação e Psicometria da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
Os efeitos da pandemia
O distanciamento social exigido pela pandemia de covid-19 para evitar a contaminação e a propagação da doença obrigou as famílias a ficarem reclusas durante meses. Como consequência, as crianças perderam importantes movimentos de socialização ao deixar de ter contato com outras, seja na escola, no parquinho perto de casa ou no playground do prédio, e isso teve impactos negativos significativos no desenvolvimento.
De acordo com Santoro, da SBP, além de não evoluírem da forma esperada, muitas tiveram uma regressão no comportamento, ou seja, passaram a ter atitudes que não são mais condizentes com a sua faixa etária —voltar a falar como bebê, usar fralda, chupar o dedo e fazer xixi na cama são algumas delas.
"A privação da liberdade e o clima de tensão no ar, com os pais nervosos, preocupados e tendo de se adaptar a novas circunstâncias, têm influenciado na saúde física e mental das crianças. Elas têm apresentado atrasos, sobretudo na linguagem, medo de sair de casa, perda de vínculo com a escola e os colegas, problemas de aprendizagem, insônia e quadros de ansiedade e depressão", afirma o médico.
Carla acrescenta que quando os pequenos não têm ou perdem o contato com outros, eles tendem a apresentar uma mudança na execução das funções executivas, essenciais no enfrentamento de situações novas ou em uma conjuntura que necessita de ajuste, adaptação e flexibilidade para lidar com as demandas advindas do ambiente, como é o caso da pandemia.
Para avaliar esse problema, a professora da UFBP, junto com a psicóloga Andriely dos Santos Cordeiro, promoveu um estudo com 338 pais/responsáveis. A conclusão foi a de que, no período avaliado, a maioria dos pequenos demonstrou dificuldades relacionadas à rotina. Muitos também apresentaram alto prejuízo em comportamentos ligados à inibição/impulsividade.
"Nos últimos meses, temos visto uma sobrecarga no uso de telas, e isso também tem tido efeitos importantes no desenvolvimento, sobretudo nos aspectos psicomotores. Ainda não sabemos como eles se darão no longo prazo. A partir de agora, precisaremos de mais estudos e muita observação para entender esse cenário", avalia Cordeiro.
A pediatra do HC-FMUSP complementa que a boa notícia é que as crianças apresentam uma maior neuroplasticidade (ou plasticidade cerebral), o que significa que seu cérebro é remodelado com mais facilidade.
Dessa forma, quando voltarem às atividades normais, a tendência é que recuperem as habilidades perdidas: "Claro que esse processo não vai acontecer do dia para a noite. Além disso, algumas terão mais dificuldade do que outras. Mas, com a retomada da rotina e tendo por perto cuidadores e professores atenciosos, é provável que esses quadros sejam revertidos", finaliza.
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