Abuso de remédios, vício e suicídio: saúde mental de anestesistas preocupa
Resumo da notícia
- Anestesistas relatam casos de abuso de fármacos e suspeita de suicídio entre colegas
- Estresse, alta carga de trabalho e plantões noturnos são alguns dos fatores que podem levar ao vício nos medicamentos
- Sociedades médicas, cooperativas e hospitais discutem assunto e criam programas de auxílio aos especialistas
Não é difícil encontrar dados que mostrem como os profissionais de saúde sofrem com exaustão mental, burnout e outros problemas psicológicos —principalmente neste momento de pandemia. Entre a classe médica, os anestesiologistas podem vivenciar mais comumente sensações de estresse e ansiedade.
A especialidade tem uma rotina, por vezes, exaustiva, sobretudo entre os que trabalham em centros cirúrgicos. Há a necessidade de estar o tempo todo em prontidão, o excesso de plantões e os diversos turnos da madrugada.
Segundo os anestesistas, entre os médicos há ainda uma desvalorização da especialização, que, por vezes, é tratada como piada. Além disso, esse profissional atua de forma muito solitária, visto apenas como peça "complementar" na sala cirúrgica —quando, na verdade, ele é tão importante quanto o cirurgião.
Todos esses fatores colocam os anestesistas como uma população de risco para transtornos psicológicos. No Brasil, trabalhos recentes publicados na revista Brazilian Journal of Anesthesiology, da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, chamam atenção para os temas envolvendo a saúde mental, sobretudo o abuso do uso de fármacos —opioides, sedativos, entre outros.
Os dados de um dos estudos apontam que 23% dos anestesiologistas, de uma amostra de 1.295, admitiram ter usado alguma substância psicoativa para alterar seu estado mental em algum momento. Além disso, 82% deles conheciam um colega que já abusou dos fármacos.
Por vezes, os profissionais utilizam essas drogas para melhorar a performance no trabalho, dar conta de sucessivos plantões ou, então, para relaxar e dormir, por exemplo.
As pessoas que abusam dessas substâncias geralmente têm outra doença psiquiátrica concomitante, como a depressão. E aí a droga entra como uma fuga da realidade, conforme explica Marcos Albuquerque, vice-presidente da SBA (Sociedade Brasileira de Anestesiologia) e diretor da Saese (Sociedade de Anestesiologia do Estado de Sergipe).
"Somos plenamente conhecedores da farmacologia. A maioria dos opioides causa dependência rapidamente. Na realidade, pode começar como uma curiosidade ou para ajudar a dormir. Mas o corpo vai se adaptando a essa substância e essa pessoa vai precisando de doses mais fortes ou de outros fármacos para substituir esse vazio", diz.
Além disso, os anestesistas têm um acesso mais fácil às drogas. "A especialidade tem horas contínuas de trabalho e longos turnos. Isso propicia essa busca por formas de minimizar o estresse. Um dos fatores de risco é que são drogas de fácil acesso, presentes no dia a dia deles", explica Maria José Carmona, professora de anestesiologia da Faculdade de Medicina da USP e vice-presidente da Saesp (Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo).
'Suicídio sem dor'
Esse vício, conhecido pelo nome de transtorno de uso de substâncias ou pela sigla TUS, causa grandes impactos na vida pessoal desse indivíduo e, principalmente, no trabalho dele —o que pode resultar no afastamento das funções. Em outras situações, esse vício pode levar a desfechos bem mais graves, como a morte —intencional ou não.
Inclusive, a especialidade apresenta altas taxas de suicídio entre os profissionais de saúde. Estima-se que 3,2% a 25% dos anestesiologistas já experimentaram comportamento ou ideação suicida e 0,5 a 2% já tentaram autoextermínio, segundo uma revisão de 11 estudos de diversos países, publicado no periódico Anaesthesia, em 1º de junho de 2021.
O anestesista Abinoam Praxedes Marques Junior, 44, presidente da Coopanest-RN (Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do Rio Grande do Norte), acompanhou quatro casos suspeitos de suicídio nos últimos anos. "Não existe tentativa de suicídio nesta especialidade, é 100% de 'sucesso'", diz.
O anestesista sabe fazer isso sem sentir dor, o que é uma barreira a menos, mas também de maior risco, porque, em qualquer momento de fraqueza, ele sabe qual é o protocolo. Abinoam Praxedes, presidente da Coopanest-RN
'Roubou drogas do hospital e se suicidou'
Abinoam, inclusive, relembra os casos que marcaram sua vida. Em um deles, havia indícios de depressão e relato de exaustão. Num dia, o médico saiu de casa, levou um kit com diversos medicamentos e foi encontrado morto em um hotel.
A história que mais o chocou foi de um homem que o procurou, durante uma reunião da cooperativa, e disse que não estava bem e tinha ideações suicidas. "Eu disse que ele deveria diminuir a carga de trabalho ou pedir licença e procurar ajuda. Ele comentou que estava bem e fazendo tratamento psiquiátrico", conta.
Abinoam mandou mensagens, mas sem retorno. Um dia, descobriu que ele teria tentado se suicidar: roubou as drogas do hospital, porém não deu certo. Na segunda vez, conseguiu. "Ele era muito jovem, forte e saudável. Tinha uma vida inteira pela frente", lamenta.
Assim como Abinoam, seu colega Frederich Marcks Abreu de Góes, 58, diretor da Saern (Sociedade De Anestesiologia do Rio Grande do Norte), acredita que esses profissionais dão sinais, aos poucos, de que algo não está bem.
"Ele dá pistas mostrando que seu comportamento já mudou: quer dar todos os plantões do mundo porque, quanto mais tempo no hospital, mais acesso aos medicamentos ele tem. Ou, também, o contrário: ele começa a faltar nos plantões e some", diz.
Para exemplificar, Frederich se lembra de um colega considerado "competente" e "muito pontual". "Um belo dia, ele faltou ao plantão e, depois, ficou estranho."
"Depois, descobrimos que, no dia seguinte, ele pegou as medicações e foi para um hotel. Se trancou e foi encontrado morto dias depois. Não tinha grandes indicativos de que iria fazer isso, só era um pouco ansioso e mais reservado, mas, de repente, aconteceu."
É possível identificar sinais?
De acordo com especialistas, sim. Inclusive, um outro estudo publicado no Brazilian Journal of Anesthesiology fez o que os autores chamam de "autópsia psicológica" de anestesistas que morreram por causa do abuso de fármacos.
Eles basicamente foram atrás de amigos ou familiares do indivíduo depois da morte para fazer um "raio-x" das questões psicológicas. Com dificuldade de acesso, os pesquisadores identificaram 18 casos e conseguiram entrevistas em apenas oito situações.
O que eles concluíram é que a maioria dessas pessoas era formada por jovens do gênero masculino, que morreram em casa ou no hospital e foram encontrados "no local".
Flávia Serebrenic, autora principal e psicóloga do GREA-IPq (Programa do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), explica que há outras características em comum.
"São pessoas, em geral, muito fechadas e reservadas, principalmente quando faziam abuso de substâncias, quando se fechavam ainda mais. Percebemos que os colegas que as conheciam no ambiente de trabalho, na verdade, sabiam muito pouco sobre elas", afirma a especialista em dependência química.
Os resultados do estudo demonstram ainda que eram pessoas que tinham um bom desempenho no trabalho, mas com mudanças sutis de comportamento, como ficar mais tempo do que o normal e/ou negligenciando responsabilidades.
Além dos já citados acima, veja mais exemplos que indicam possível vício em fármacos:
- Fazer mais horas de plantão;
- Passar muito tempo no banheiro;
- Começar a usar roupas com manga comprida;
- Mudança de humor: ora mais estressado, ora mais calmo;
- Ficar mais isolado dos amigos e da família;
- Começar a faltar no trabalho;
- Negligências com a própria saúde.
A psicóloga, que realiza atendimentos de anestesistas em situações como essa, nota uma rotina "insana". "É realmente muito estressante, eles passam horas na sala cirúrgica. É meio que uma bola de neve. Quanto mais abusam, mais entram nessa vida e aí querem passar o tempo todo no hospital", diz.
E, aqui, entra outra preocupação deste abuso de medicamentos: a segurança do paciente. "Isso mexe com uma outra vida que está ali. O risco de vida não é só dele", explica a psicóloga do IPq. "A descrição desses profissionais que abusam de anestésicos e opioides é de que é impossível voltar para uma sala de cirurgia."
É possível reverter o quadro
O primeiro passo é que esse profissional seja afastado dos serviços e, quando estiver apto, seja realocado. Por mais que na anestesia existam outras funções além de ambientes cirúrgicos, é tentador atuar com algo que traga acesso facilitador às drogas.
O tratamento de dependência química envolve um atendimento multiprofissional e exige um olhar geral para a vida daquela pessoa, segundo Lívia Beraldo, psiquiatra especialista em dependência química do IPq da USP.
"Na grande maioria dos casos, a dependência não vem sozinha, mas com outros problemas psicológicos, principalmente depressão, ansiedade e transtorno de personalidade", explica a médica.
Segundo Beraldo, há ainda outros fatores envolvidos, como a genética da pessoa, possíveis comorbidades e o ambiente de trabalho em que ela se encontra. "Um tratamento que olhe apenas para a questão da dependência é muito pobre para o paciente", diz.
O tratamento inclui, portanto, psicólogo e psiquiatra. Nem sempre a internação é necessária, depende do paciente. Outros cuidados essenciais —muito esquecidos pelos profissionais— é a prática de atividade física, cuidados com a alimentação e com o sono, além da presença da família.
Emiliana Gomes de Mello, 36, anestesista e diretora de defesa profissional da Saern, de Natal, cresceu em uma família de médicos. Desde sempre buscou atividades que ajudassem no seu bem-estar físico e mental.
"Faço terapia e meus pais falam que é besteira, que era só conversar com eles", conta a médica. Para "fugir" um pouco do assunto "medicina", estuda filosofia e faz aulas de violoncelo.
Como também dá aula para estudantes, sempre incorpora o tema de abuso de fármacos nas conversas.
Eu explico que amanhã podem ser eles e que, caso escolham esse caminho, é algo sem volta. A chance de sobreviver a isso é não ser mais anestesista. Emiliana Gomes, anestesista e diretora de defesa profissional da Saern, de Natal
Médicos tomam iniciativa para discutir problema
Inclusive, Emiliana faz parte de uma das diversas iniciativas que vêm surgindo das sociedades médicas, como o Núcleo do EU, da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, que visa destacar os cuidados que os anestesistas devem ter com a própria saúde física e mental.
"São três pilares: cuidados com os aspectos emocionais, de espiritualidade —aqui, não estamos falando apenas de religiões, mas em qualquer coisa que a pessoa acredite— e gerenciamento financeiro", explica o vice-presidente da SBA.
Na Saesp, há o programa We Care, que é um programa para o paciente, familiares, colegas ou chefes de serviços do dependente químico recorrerem e, tudo isso, gratuitamente. Uma das ações deste programa é proporcionar orientação inicial com especialistas das áreas de psicologia e psiquiatria.
Felizmente, o assunto está sendo discutido com mais atenção apesar de ainda ser um grande tabu, mas é o primeiro passo para buscar solução.
Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente.
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