Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


'Segundo cérebro', intestino tem influência na saúde mental; veja por quê

iStock
Imagem: iStock

Marcelo Testoni

Colaboração para VivaBem

07/10/2021 04h00

Ao longo da última década, os avanços da ciência nos permitiram entender melhor o funcionamento do corpo humano. Uma das grandes surpresas dessa leva de conhecimento adquirido envolve o intestino. Com até nove metros de comprimento e cerca de 500 milhões de células nervosas, ele deixou de ser considerado apenas um órgão de digestão, absorção e transporte de nutrientes e ganhou também o status de "parte pensante" do corpo.

Tudo porque estudos recentes revelaram que o intestino tem influência sobre nossas emoções, nosso sono, nossos comportamentos e até transtornos mentais —um papel que ele já deve desempenhar há muito tempo, desde quando algumas transformações evolutivas possibilitaram o desenvolvimento de uma rede de neurônios digestivos para "compreender" melhor a variedade de alimentos que ingerimos.

A vantagem dessa evolução era enorme: "entendendo" os tipos de alimentos que ingeríamos, o intestino conseguia repelir ou eliminar aqueles considerados tóxicos ou mais perigosos, e aproveitar melhor aqueles mais ricos em nutrientes, vitaminas, minerais e energia.

"Batizada de sistema nervoso entérico, essa rede neural percorre todo o abdome, do esôfago até o reto, interagindo com o sistema nervoso central, permitindo o envio e o recebimento de mensagens entre cérebro e intestino", explica Júlio Barbosa Pereira, médico pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e neurocirurgião com especialização pela UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles). Juntos, os dois órgãos trabalham pelas atividades voluntárias e involuntárias do organismo.

Reforçando as defesas

Atuando de forma autônoma, essa rede de neurônios assumiu uma série de tarefas importantes para o nosso corpo. É dela, por exemplo, a responsabilidade de regular e modular a atividade endócrina das células do trato gastrointestinal. Também age sobre o sistema imunológico, estimulando a produção e transporte de células de defesa (os chamados linfócitos).

Essa parte, aliás, também é influenciada pelas bactérias que povoam o intestino e formam a microbiota (antigamente conhecida como "flora intestinal"). Além de terem um papel importante na digestão e absorção de nutrientes, produzindo substâncias que ajudam na digestão para, em troca, conseguirem os nutrientes de que precisam para viver, elas também reforçam nossas defesas impedindo que agentes infecciosos penetrem no nosso corpo e provoquem doenças.

Para se ter uma ideia, alguns estudos mostraram que a falta de bactérias intestinais boas ou o aumento das consideradas ruins (quando há um desequilíbrio na microbiota, problema chamado de disbiose) pode levar a inflamações e distúrbios gastrointestinais. Esse desequilíbrio também está relacionado com problemas como diabetes, obesidade e úlceras gástricas.

Papel na saúde mental

A disbiose também já é considerada uma das causas para problemas que envolvem o sistema nervoso, como a insônia. "Também parece influenciar em doenças do sistema nervoso como Alzheimer, neurodegenerações e acidente vascular cerebral (AVC), além de apresentar ligação com o transtorno do espectro autista", acrescenta Luana Luz, gastroenterologista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo e da clínica Gastrofig.

Mas não é apenas o aspecto físico do sistema nervoso que sofre a influência do intestino. Comportamentos e sentimentos também podem ser induzidos por ele. Isso porque a rede neural presente no órgão é responsável por comandar a liberação de mais de 30 neurotransmissores, incluindo aí a dopamina (relacionada ao prazer e à motivação) e a serotonina (que ajuda a regular humor, sono, apetite).

Com toda essa influência, não é à toa que o intestino tenha ganhado o apelido de "segundo cérebro". Para se ter uma ideia, estima-se que 50% da dopamina do nosso corpo e 90% da serotonina (ou seja, quase toda a cota dela) sejam processadas no intestino, afirma Júlio Barbosa Pereira. Por isso, não é exagero dizer que um desequilíbrio no funcionamento desse órgão serve de gatilho para quadros de baixa autoestima, ansiedade, compulsão, depressão e até de alucinações.

E alguns estudos comprovaram isso. Em 2011, por exemplo, um estudo da Universidade Cork, na Irlanda, atestou que o Lactobacillus rhamnosus, uma das bactérias que vivem no intestino, foi capaz de alterar as condições físicas e emocionais de ratos que receberam doses extras do microrganismo na comida. O resultado é que os animais ficaram mais dispostos e relaxados após ingerir os bacilos.

Para ter certeza, outros testes foram feitos e de fato o efeito se confirmou. Depois, em 2013, os experimentos evoluíram para humanos. O veredito de um estudo da Universidade da Califórnia, nos EUA, foi de que as bactérias Bifidobacterium, Streptococcus, Lactococcus e Lactobacillus causaram mudanças no sistema digestivo que repercutiram também no cérebro: as áreas responsáveis pelas percepções de dor, temperatura, fome e tato tiveram uma redução das atividades, enquanto as que gerenciam atenção e controle emocional tiveram suas conexões ampliadas.

Alimentando as bactérias

Compreender a conexão entre cérebro e intestino e como ela tem impacto na nossa saúde física e, especialmente, mental, só reforça a importância de se manter hábitos de vida saudáveis. Manter uma alimentação diversificada, equilibrada e de boa qualidade, além de praticar exercícios físicos de forma regular e ainda usar ferramentas como a meditação para gerenciar o estresse e as emoções do dia a dia são atitudes que contam para manter a estrutura positiva da nossa microbiota, afirma Edvânia Soares, nutricionista especialista em nutrição clínica, geral e esportiva da Estima Nutrição, em São Paulo.

Por outro lado, o consumo acima do recomendado de carboidratos, alimentos processados e bebidas alcoólicas, além do uso frequente de antibióticos e anti-inflamatórios, pode tornar a microbiota intestinal desequilibrada. O excesso de carnes, frituras, alimentos ácidos e gordurosos e a pouca ingestão de água também favorece essa instabilidade, que pode provocar o aparecimento de alergias e piorando os quadros de quem sofre com doença de Crohn e a síndrome do intestino irritável.

Para evitar essas complicações e favorecer a proliferação das bactérias consideradas boas, a nutricionista recomenda a manutenção de uma alimentação variada, já que o consumo de poucos alimentos com frequência costuma empobrecer a microbiota. E, se for preciso reorganizar o ecossistema de bactérias, é possível utilizar (sempre sob orientação especializada) a ingestão de alimentos ou cápsulas de probióticos (que contém microrganismos vivos para povoar o intestino) ou prebióticos (alimentos que favorecem a proliferação de bactérias intestinais). Em último caso, síndromes e inflamações mais sérias também podem utilizar o transplante de fezes para reequilibrar os microrganismos da microbiota.