Composto lácteo tem rótulo parecido com o de leite, mas contém aditivos
Nos últimos anos, novos produtos lácteos estão surgindo no mercado. Apesar de possuírem rótulos e formatos de embalagens similares aos leites e derivados já conhecidos dos consumidores, esses produtos contam com fórmulas diferentes e até novas nomenclaturas.
O que parece leite em pó é, na verdade, composto lácteo. Até o leite condensado tem uma versão similar, a mistura láctea condensada. Será que o que você está levando para sua casa é realmente o produto que imaginava?
A maioria desses novos produtos tem uma semelhança: a presença do soro de leite (whey protein, em inglês). Durante séculos, esse soro foi um descarte da produção de queijos. Mas vieram os impactos ambientais. E, então, ele foi convertido numa matéria-prima onipresente em produtos processados —entenda como o soro do leite deixou de ser um descarte industrial e se tornar ingrediente de alimentos caros.
No período de 2007 a 2020, o Ministério da Agricultura publicou uma série de instruções normativas para definir a composição de produtos lácteos, como a bebida láctea, o composto lácteo e até mesmo o leite em pó. Mas, apesar dessas definições, as diferenças entre os produtos passam despercebidas pelo consumidor. Para piorar o cenário, entidades da sociedade civil denunciam práticas irregulares de vendas casadas.
"A gente tem uma infinidade de novos produtos sendo criados e entrando nas gôndolas dos supermercados o tempo todo. E hoje temos alguns produtos que são muito similares a produtos mais conhecidos do consumidor", explica a nutricionista Laís Amaral, integrante do Idec (Programa de Alimentos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). "Por exemplo, a gente vê o requeijão e a cobertura cremosa, que são tipos diferentes de produtos, e na verdade eles vêm em embalagens muito similares. Outro caso bastante comum é a similaridade da fórmula infantil, do leite em pó e dos compostos lácteos."
As diferenças visuais entre os novos lácteos, por assim dizer, e os produtos já marcantes na memória do consumidor são mínimas e chegam, em alguns casos, a se resumir a pequenas letras nos rótulos, algo que pode passar sem ser visto na hora da compra.
"Os rótulos não são compreendidos pelos consumidores e, por não serem compreendidos, as pessoas acabam levando outros produtos sem ler", avalia Amaral. "Ler rótulos leva tempo, a informação é confusa, precisa muitas vezes fazer conta e tem muita informação técnica. E a diferença desses novos produtos está onde? Na sua denominação de venda, que é uma informação obrigatória, mas não é informação de destaque."
Como identificar?
Imagine um pacote de leite em pó. Normalmente, existem informações em linha reta, na horizontal, abaixo do logo do produto. Há marcas que destacam, dessa mesma forma, se o produto contém vitaminas ou se está adoçado. Agora, o que ele é de fato, onde está escrito se é leite em pó ou outro produto não acompanha essa mesma formatação.
Muitos compostos lácteos colocam o que são, a sua denominação obrigatória, na lateral ou na parte de baixo do rótulo —você teria de virar a embalagem para visualizar adequadamente. E, no meio das compras, você costuma virar as embalagens para ler tudo o que está escrito? Melhor: você costuma parar e ler todas as informações dos produtos que vai levar?
Outro teste, aproveitando que estamos falando de leite em pó. Sabe o Ninho, aquela linha de produtos da Nestlé dedicada às crianças? Você sabia que há produtos dessa marca que são leite em pó e outros que não são? E se essa situação já é confusa por si só, ela piora quando envolve a alimentação infantil. A publicidade também não faz qualquer diferenciação entre os produtos e apresenta todos como completos do ponto de vista nutricional.
"O composto lácteo é um produto que tem que ter, pelo menos, 51% de ingredientes lácteos e o restante pode ser qualquer coisa, açúcar, aditivo alimentar ou outros ingredientes", recorda Laís Amaral. Em especial nas farmácias, o composto lácteo é muito confundido com a fórmula infantil, um alimento destinado a crianças com até 12 meses.
No Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos, o Ministério da Saúde avalia que os compostos lácteos são ultraprocessados e, portanto, não devem ser consumidos por bebês. O documento oficial orienta a ter atenção pelo fato de as latas dos compostos serem parecidas com as das fórmulas. No caso da Nestlé, por exemplo, a linha de compostos Neslac e a linha de fórmulas Nanlac têm nomes, latas e identidades visuais muito similares.
A comercialização das fórmulas têm uma legislação: a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Nbcal). O país adotou a norma ainda nos anos 1980, mas na forma de uma resolução do Conselho Nacional de Saúde. Foi apenas em 2006 que essa norma foi transformada em lei e, entre suas definições, passou a punir empresas que façam promoção comercial das fórmulas infantis.
No ano seguinte, entraram em cena os compostos lácteos que, em tese, não têm as mesmas restrições impostas às fórmulas —podem, por exemplo, entrar nas "ofertas do dia" e oferecer brindes. "Mas com os compostos lácteos, a confusão está sendo induzida pelo rótulo e pela embalagem muito parecida. Isso se chama promoção cruzada, que é quando um produto que as pessoas já conhecem acaba fazendo a propaganda de outro", alerta a representante do Idec.
Promoção, dois anúncios por um
Nesse caso da venda casada, o benefício acaba vindo para os dois produtos. O composto lácteo se aproveita de uma imagem familiar ao consumidor para se vender e, como não tem lei que impeça isso, tecnicamente o fabricante pode ilustrar cartazes de descontos ou melhores posições em gôndolas, chamando a atenção de quem compra.
Foram essas atitudes que chamaram a atenção de Dryelle Oliveira, mestre em nutrição pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Epidemiológicos em Saúde e Nutrição da instituição. Ao ver de perto que as pessoas estavam, sim, levando gato por lebre, ou melhor, composto lácteo por fórmula infantil, ela resolveu dedicar sua pesquisa a mostrar as semelhanças nas rotulagens desses produtos. E um estudo que começou com 13 compostos listados conta, hoje, com 18 —porque ela sabe que a cada semana surge algo novo.
"O nosso plano enquanto grupo de pesquisa é justamente solicitar a inclusão dos compostos lácteos na Nbcal. A gente sugere essa inclusão para conseguirmos controlar a comercialização deles no escopo da lei, assim como todos os outros produtos que têm esse direcionamento infantil. Já que ele é vendido como substituto ou suplemento [para crianças], então a gente tem que regulamentá-lo também dentro da legislação", afirma Oliveira.
Durante a elaboração desta reportagem, algumas atitudes um tanto quanto óbvias foram feitas, como jogar na barra de buscas do navegador "o que é leite em pó?", por exemplo. E na internet a regra é clara: tudo o que você pesquisa volta, mas como anúncio. Foi assim que um dia desses, enquanto mexia no Instagram, fui impactado por uma série de Stories de um produto com várias vitaminas, todas coloridas, a lata amarela da cor do sol e aquele nome que parece no diminutivo, para ligar às crianças, sabe? O meu imaginário pensou em leite em pó ou fórmula infantil, mas não era, até porque a publicidade é proibida: era composto lácteo, mesmo.
O Idec e a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan) realizam anualmente um monitoramento de violações às normas da Nbcal. Como explicam as entidades, é proibida a promoção comercial de produtos destinados às crianças, seja ela por exposições especiais e descontos de preço, seja por cupons de descontos, prêmios, brindes, vendas vinculadas ou apresentações especiais.
Em 2020, por conta da pandemia de covid-19, o monitoramento foi adaptado, com foco nas lojas físicas e ambientes digitais. A pesquisa identificou 389 infrações, de 101 empresas. Na internet, os compostos lácteos representaram 18,2% do total de produtos com violações comerciais, mas nas lojas físicas essa porcentagem saltou para 35,7%, fazendo com que esses compostos ocupassem a liderança dos produtos com infrações no último ano.
"É uma questão da gente disseminar melhor essa política da fiscalização para empoderarmos as pessoas", pontua a mestre em nutrição Dryelle Oliveira. Afinal, para que os compostos lácteos sejam incluídos na Nbcal, é necessário um projeto de lei.
O projeto já existe, é o de nº 3.828, de 2019, de autoria do senador Confúcio Moura (MDB/RO). Desde o começo de setembro, o PL está disponível para votação na CDH, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, aguardando apenas os senadores.
"Quanto mais gente souber disso e fizer barulho, mais coisas a gente consegue. Nós precisamos pressionar o poder público para efetivamente melhorar a política pública. Porque a política pública é mutável, ela tem que ser atualizada sempre, conforme a nossa realidade", conclui Oliveira.
Mas esses novos produtos são bons?
Se pelo lado de rotulagem e comercial há questões envolvendo os compostos lácteos, o que dizer deles como alimentos? São bons ou ruins? Para responder a essas questões, a reportagem procurou três engenheiros de alimentos. Dois do Ital, o Instituto de Tecnologia de Alimentos do Governo do Estado de São Paulo, e um da Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas. Eles foram categóricos: não dá para dizer que todos esses produtos são ruins. Pelo contrário.
"A indústria não transformou o leite em pó em composto lácteo, o composto lácteo existe e é regulamentado. Na verdade, os produtos lácteos são bastante normatizados na legislação brasileira", salienta Patrícia Blumer, pesquisadora de novos produtos no setor de lácteos do Ital. "Por exemplo, eu posso pegar um leite em pó desnatado, misturar ele com um prebiótico, que tem benefícios para a microbiota, e aí não vou poder mais chamar ele de leite em pó. É só leite em pó misturado com uma fibra, mas eu não posso mais chamar ele de leite em pó. Por quê? Porque a legislação de leite em pó é muito rigorosa, leite em pó é só o puro. Então, eu vou ter que chamar ele de composto lácteo."
Isso significa que o conceito de composto lácteo engloba muita coisa e, sim, produtos com teor maior ou menor de proteínas. "Tem o composto lácteo bem baratinho, que mistura açúcar, amido, gordura vegetal em pó com soro em pó? Tem. E, no fim, ele atende, sim, infelizmente, uma parcela da população de baixa renda que não pode consumir um produto melhor."
Guilherme Tavares, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, concorda que as normas regulatórias do Ministério da Agricultura definem muito bem o que são os produtos lácteos e, principalmente, o que as indústrias podem adicionar neles.
"Eu não acho que seria justo, pensando nas inovações que esses tipos de produtos trazem, de colocar como se fosse uma tentativa de enganar alguém. A gente está falando de produtos diferentes, com funcionalidades diferentes, nichos de mercado diferentes, e isso aparece nas embalagens. A questão das fibras, por exemplo, se torna um atrativo de venda, para falar 'olha, esse produto é diferente por causa disso'. Há uma grande variedade de produtos no mercado e precisamos ter o cuidado de olhar as informações disponíveis para tentarmos entender o que a gente está comprando", avalia.
Para Tavares, a rotulagem similar entre os produtos tem uma justificativa. "Como são produtos que têm um perfil de consumo parecido, a gente está falando de produtos em pó que vão ser consumidos em uma forma reidratada, então eles vão ser apresentados nos supermercados de forma próxima, um produto próximo do outro. Mas as informações estão lá."
E quanto à questão da gestão de proteínas, Patrícia Blumer chama a atenção para outros itens em comercialização. "Há outros produtos de origem vegetal que entram no mercado tentando se parecer com produtos lácteos e que não têm normas estabelecidas. As pessoas falam que o teor de proteína de um composto lácteo é baixo, mas ele tem que ter entre 9% ou 13%. Sabe qual é o teor do leite de coco em pó? 3%. E não tem normatização", informa.
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