Meu professor amigo: educador é importante na saúde psicológica da criança
Resumo da notícia
- Os vínculos afetivos criados entre professor e aluno, sobretudo durante a infância, contribuem para manter uma boa saúde mental
- Essa relação que não é exclusiva ao aprendizado faz com que as crianças se sintam acolhidas, amadas e confiem no professor
- Muitas vezes, a realidade atual já evidencia problemas futuros, mas o professor pode ajudar a mudar o quadro
"Uma criança, um professor, um livro, uma caneta podem mudar o mundo". A frase de Malala Yousafzai, a ganhadora mais jovem do prêmio Nobel da Paz de 2014, ecoou no mundo inteiro e se tornou uma bandeira para a educação. Assim como a jovem paquistanesa ressaltou, um professor é essencial, especialmente aqueles que, além de ensinar, constroem uma relação de amizade com os alunos.
Deborah Moss, neuropsicóloga, especialista em comportamento infantil e mestre em psicologia do desenvolvimento pela USP (Universidade de São Paulo), afirma que o professor não é só aquele que ensina, mas sim o que lida com a criança em todas suas esferas.
Disso a professora Kátia Regina Reis Correia, 53, entende bem. Ela conta que, por 16 anos, deu aulas para o ensino fundamental I, na praia do Araçagi, localizada na região metropolitana de São Luís (MA). Em 1992, Kátia encontrou crianças que não conheciam nada —a não ser a própria vila. Por isso, houve um desafio inicial: despertar o interesse delas. Para isso, a jovem professora abusou da criatividade e a turminha da 1ª série aprendeu a ler e a escrever na praia.
O cenário prendia a atenção das crianças humildes da então ilha dos pescadores. Lá, o caderno era a areia, e os gravetos, o lápis. E o resultado não demorou a surgir: os alunos aprenderam rapidamente. O entusiasmo da jovem professora fez com que ela ganhasse o título de professora nota 10, em 2003.
"Eu não me tornei só amiga das crianças, mas também das famílias. A gente descia para a praia, brincávamos", recorda-se, acrescentando que mesmo bem pequenos, os alunos já vendiam frutos do mar para ajudar os pais.
Ela permaneceu nessa escola até 2008 e, durante esse tempo, estimulou muitas crianças que acreditavam que não "passariam daquilo". "Eu dizia que era necessário aspirar coisas mais altas na vida. Como professora, esses foram os anos mais marcantes e inesquecíveis da minha vida", diz, emocionada.
Ela não é a única, os alunos também lembram. "Inclusive, encontrei recentemente um ex-aluno, o Renato, que hoje está com mais de 20 anos. Descobri que ele tem um chalé e um barzinho muito lindo, nessa mesma praia. Ele me abraçou, me chamou de tia, me pediu até a benção, e ainda me mostrou os boletins da escola que havia guardado todos esses anos", conta orgulhosa.
Wimer Bottura, médico especialista em psiquiatria infantil pelo IPq-FMUSP (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), diz que existem professores que marcam a vida do aluno, até mesmo aqueles que têm dificuldade de aceitar a escola ou são rebeldes. "Nesses casos, eles têm uma linguagem diferenciada e conseguem 'acessar' aquela criança".
Todo o carinho e atenção dedicados ao aluno contribuem para evitar futuros transtornos mentais. "Nós estamos falando de um professor que pensa a criança na sua integralidade, instiga a pensar de outras maneiras, ter outros olhares, não só em transmitir conteúdo", acrescenta Juliana Hampshire, psicóloga e consultora pedagógica do LIV (Laboratório Inteligência de Vida).
A psicóloga explica que são nos primeiros anos escolares que a criança tem maiores possibilidades de descobrir um mundo diferente ao que está habituada. "O professor que cria um vínculo com a criança pode poupá-la de outros dramas. Às vezes, ela não teve o carinho de uma mãe, mas teve de uma professora, que também cuidou dela emocionalmente, mesmo que de forma inconsciente, e isso fica dentro da criança", diz a neuropsicóloga Déborah Moss, especialista em comportamento infantil.
Professores também precisam de cuidado
Tempos depois, Kátia foi trabalhar num bairro periférico de São Luís dominado por traficantes. Lá, os conflitos policiais eram constantes. "Os pais de algumas crianças vivam presos e aí foi mais difícil. Eu precisei valorizar cada uma e despertar nelas a vontade de sair daquela situação", diz.
A professora conseguiu se tornar amiga dos pais, fazendo com que o trabalho evoluísse. "Alguns pais iam na escola com tornozeleiras, mas me respeitavam e eu ia despertando neles o desejo de que seus filhos não tivessem o mesmo destino e fossem alguém na vida", diz.
O professor, portanto, pode ser um ótimo influenciador. Entretanto, segundo Bottura, é preciso tirar a responsabilidade de o professor se comprometer a ser o psicólogo ou o substituto dos pais. "Ele não tem a mínima obrigação disso, mas se puder fazer, vai ser ótimo", pondera o especialista. "Eu sou absolutamente favorável que o professor tenha a condição de poder ouvir, pensar o que o aluno traz de informação, porque a simples escuta e a visibilidade já atribuem valor à criança", explica.
Atualmente, após 30 anos de profissão, Kátia leciona para crianças do infantil II, em uma escola perto de sua casa. "Sempre que faço alguma coisa errada, eu falo: 'crianças, me perdoem pelo que fiz'. Dessa forma, a sala de aula sempre foi tranquila e harmoniosa. Eu amo o que faço, mas não é fácil ser professora em um país como o nosso", diz.
Professora aposentada segue dando aulas
A professora Nancí Souza Rocha de Brito, 52, de Sapucaia (RJ), também é cheia de histórias para contar. E não é para menos, afinal, há 31 anos, ela não larga o batente, e continua dando aulas em uma escola municipal.
Ela também sempre teve que se virar para ajudar as crianças. E foi numa escola em um povoado, na cidade Três Rios (RJ), onde viveu os melhores anos. Orgulhosa, ela conta que muitas mães pediam a sua ajuda para conversar com seus filhos, já que eles atendiam mais a ela do que a própria família, embora saiba que isso não seja o ideal.
Mas tantos anos de profissão geraram muitos frutos. "Teve um aluno autista que se desenvolveu muito, ampliou o vocabulário e começou a participar das atividades junto com os outros. Isso dentro do letramento e da bagagem que tinha", lembra.
Hoje, ela tem amigas professoras que foram suas alunas e seguiram seus passos, mesmo com todas as dificuldades. "Para ir à escola tinha que atravessar um rio e, se enchesse demais, elas tinham que ficar na vila. Têm crianças que têm poucas possibilidades, mas têm, sim, habilidades específicas", afirma.
Um dos principais problemas, segundo Nancí, é a condição socioeconômica dos alunos. "Nós morávamos todos bem próximos, então eu sempre corri para conseguir um remédio para um aluno, ajudar o outro. Havia crianças que não tinham nenhum livro em casa e diziam que a única coisa escrita era o calendário na geladeira", relata.
"Eu sempre fazia movimentos para arrecadar livros, quando não tinha merenda, a gente corria atrás, levávamos verduras, legumes, fazíamos horta na escola. Todo mundo que morava na região ajudava", recorda.
Mas embora seja uma história de superação, há precariedades notórias. "Sobra ao professor muitas responsabilidades que são da família e do Estado. E quanto mais investimento nas escolas, menos cadeia", alerta Bottura.
Durante 20 anos, essa escola foi sua segunda casa. Hoje ela não existe mais, mas a união com os colegas da escola permaneceu. "Comecei a lecionar lá em 1990, e não vai ter escola igual. Nós éramos uma família mesmo. Muitos alunos que eram da comunidade, que ninguém dava nada, fizeram diversas faculdades", comemora a professora.
No entanto, ela diz que continua gostando da profissão e que sua escola atual tem mais estrutura e muitos livros para os seus pequenos. "Os professores podem influenciar nas escolhas mais saudáveis dos alunos com o passar dos anos", frisa Juliana Hampshire, psicóloga e consultora pedagógica do LIV (Laboratório Inteligência de Vida).
Fontes: Aline Marijo Mesquita de Lima, pedagoga e especialista em psicopedagogia (PE); Deborah Moss, neuropsicóloga, especialista em comportamento infantil, mestre em psicologia do desenvolvimento pela USP (Universidade de São Paulo); Juliana Hampshire, psicóloga e consultora pedagógica do LIV (Laboratório Inteligência de Vida); Wimer Bottura, médico especialista em psiquiatria infantil pelo IPq-FMUSP (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP).
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