Recompensa e busca por prazer: por que alguns trocam um vício por outro?
Você já deve ter ouvido a história de alguém que, após parar de fumar e beber, começou a comer em excesso e até a jogar de maneira excessiva. Ou alguém que era obeso e tinha uma compulsão alimentar, mas emagreceu e ficou "viciado" em fazer exercícios e dieta.
Pois é, trocar uma dependência por outra, se viciando em alguma nova substância ou comportamento, não é algo incomum. Na psiquiatria, isso é chamado de dependência substitutiva —e, se a mudança for por um hábito saudável, não necessariamente é algo ruim (caso não haja excessos, claro).
"Quando há a substituição de uma substância por outra, pode ser devido à busca dos mesmos efeitos no organismo que a primeira gerava, ou por causa do processo de abstinência", afirma o psiquiatra Ricardo Abrantes do Amaral, do IPq (Instituto de Psiquiatria) da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Eventualmente, pode ocorrer ainda, segundo o médico, a presença das duas condições na mesma pessoa. Mas, especialistas avisam que é preciso cautela, pois a questão não é simples e pode estar associada a múltiplos fatores. "A neurobiologia da adição é bastante complexa e envolve diferentes processos fisiológicos, como tolerância e sensibilização, e processos cognitivo-comportamentais, como abstinência, consumo e fissura", explica o neurocientista Claudio Queiroz, professor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Por isso, segundo Queiroz, o mais honesto é dizer que, até o momento, a ciência ainda não sabe ao certo o que causa a substituição de dependências.
'Troca de vícios' não é regra
Uma importante revisão sistemática e abrangente sobre substituição de dependência acaba de ser publicada na revista Clinical Psychology Review. O artigo tem como autor principal o professor Andrew Kim, do Departamento de Psicologia da Universidade Ryerson, em Toronto, no Canadá. O estudo, que compilou resultados de outros 96 trabalhos sobre o tema desde 1975, mostrou que menos de 20% deles apresentavam evidências de substituição de vício. Em comparação, 53% dos estudos revelaram o oposto: que a redução no consumo de uma substância de abuso reduzia o consumo de outras similares, ou ainda hábitos, que poderiam ser compreendidos como nocivos.
Por esse motivo, Queiroz acredita que a susceptibilidade cruzada no abuso de substâncias pode ocorrer, mas provavelmente é mais exceção que a regra.
O estudo demonstrou ainda que a substituição do vício durante a recuperação do uso de substâncias ou vícios comportamentais tem mais incidência em pessoas mais jovens e do sexo masculino.
Comportamento familiar
A substituição de dependências é um tema muito debatido no meio científico. Se por um lado o estudo da universidade canadense aponta um problema de proporção menor do que pensavam alguns especialistas, por outro, comprova também que ela é um fato. E o problema afeta de forma grave muitas pessoas e famílias.
Alguns subtipos de dependência, inclusive, possuem essa característica de trocar um vício por outro, acrescenta o psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
"Eu tive um paciente que me procurou por abuso de álcool, fiz o tratamento e ele se tornou um compulsivo sexual", conta. O médico conta que a situação foi piorando. "Ele quase acabou com a própria vida". Depois de um novo tratamento, ele se tornou um jogador patológico. "Estou falando de um caso, mas há muitos relatos do tipo", afirma.
Segundo ele, comportamentos familiares podem estar associados ao problema. "Já realizei alguns estudos que apresentaram evidências de que existe esse perfil", diz o médico, que já foi consultor da Senad (Secretaria Nacional de Drogas) do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde.
Segundo ele, famílias de alcoólicos, por exemplo, têm mais risco de ter um membro que seja um jogador patológico. "Também é frequente um dependente de drogas, em geral do sexo masculino, ter uma irmã com compulsão alimentar", afirma.
De acordo com o psiquiatra, existe algo em comum às várias dependências, químicas e não químicas, de drogas lícitas e proibidas. "Há um maior risco e frequência", diz Xavier. Por outro lado, há também as dependências específicas, pondera o médico. "Tem gente que é dependente de álcool e usa drogas ilícitas esporadicamente", diz.
Neste caso, o controle ou não dos impulsos pode explicar o comportamento. "O indivíduo, por uma impulsividade exacerbada, fica mais vulnerável a desenvolver um comportamento compulsivo", explica o especialista.
Já entre as pessoas com compulsão alimentar, pode ocorrer justamente o inverso. Aquelas com mais autocontrole e menos impulsivas têm mais chance de desenvolver uma dependência de exercícios físicos e dietas, observa o psiquiatra Ricardo Amaral, do IPq.
Sistema de recompensa
Embora não seja uma resposta geral para todos os casos, alguns indivíduos conseguem controlar o consumo abusivo de determinada substância, mas iniciam ou aumentam a utilização de outra por causa de uma espécie de mecanismo de compensação. Isso acontece porque substâncias ou comportamentos "viciantes" acabam modulando o sistema fisiológico de recompensa de uma forma diferente, afirma Claudio Queiroz, do Instituto do Cérebro.
De acordo com o professor, esse sistema utiliza a dopamina como neurotransmissor principal, produzindo uma sensação de prazer e bem-estar a partir de estímulos diversos, por exemplo ao beber água quando temos sede e após fazer sexo ou exercício físico. No entanto, drogas psicotrópicas de abuso têm a capacidade de ativar direta ou indiretamente esse sistema e, em alguns casos, de forma mais intensa que qualquer estímulo fisiológico.
O psiquiatra Ricardo Amaral afirma que, no caso do álcool, estudos focados em pacientes em tratamento mostraram uma expressiva variedade de casos de substituição de vícios. Há trocas por internet, aumento do consumo de cigarros, doces, tranquilizantes, jogos e hobbies, trabalho compulsivo, religião, orações e práticas místicas. "Mais da metade dos dependentes evoluíram com uma dependência substitutiva", diz.
Vulnerabilidade genética
Os especialistas afirmam também que existem pessoas com mais predisposição ao vício do que outras por causa de vulnerabilidades genéticas para a metabolização de substâncias, em especial o álcool.
São mecanismos relacionados a níveis mais elevados de sensibilidade para o prazer, impulsividade e a diversos outros aspectos do funcionamento mental, diz Ricardo Amaral, do IPq. "A presença dessas vulnerabilidades aumenta a probabilidade de uma pessoa se tornar dependente, tanto de substâncias quanto de comportamentos", diz.
Por isso, há uma teoria na neurobiologia que trata dessa possível associação entre genes e comportamentos aditivos, diz o neurocientista da UFRN, Claudio Queiroz. De acordo com ela, poderia haver alguma relação entre esse perfil de comportamento e algo chamado polimorfismo, ou seja, pequenas variações na codificação de proteínas dos receptores de dopamina.
Estudos populacionais mostraram uma associação —e não causalidade— entre a presença do polimorfismo do tipo Taq1A e obesidade e adição, detalha Queiroz.
Mas o neurocientista ressalta que outros fatores, além dos genéticos, devem ser considerados. "O comportamento de uso e abuso de substâncias por seres humanos é algo muito complexo e multifatorial", diz. Segundo ele, tentativas de inferir causalidade entre expressão gênica e comportamentos humanos não foram capazes de explicar diversos fenômenos, incluindo o vício e outros comportamentos patológicos.
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