Ele começou a correr após esclerose múltipla, e hoje faz mais de 230 km
Em 2010, Agenor Netto foi diagnosticado com esclerose múltipla aos 37 anos de idade após sofrer três surtos da doença. Incentivado pelo neurologista e pela esposa a fazer uma atividade física para ajudar no tratamento, começou a praticar corrida cinco anos depois do diagnóstico. Nascido e vivendo em Ilhéus (BA), ele é hoje, aos 47, o primeiro brasileiro com esclerose múltipla a realizar uma ultramaratona no país —ele já participou de 4.
"O primeiro surto da doença aconteceu em 2010. Ao acordar, não consegui sair da cama, vomitei e via tudo girando ao meu redor, sentia uma pressão me empurrando para baixo. Minha mãe e esposa me levaram ao hospital. O médico disse que era uma crise de labirintite e me internou por três dias.
Sou propagandista vendedor, vivo viajando. Após receber alta, viajei a trabalho para uma outra cidade e tive um novo surto enquanto dirigia. Fiquei com tontura, visão turva, tive vômitos, parecia que a cabeça ia explodir. Pedi socorro em uma fazenda, os moradores me acolheram até meu pai e cunhado irem me buscar e me levar ao hospital.
O médico disse que era estresse, me deu oito dias de atestado e pediu para eu descansar. Nas duas situações, os profissionais não pediram nenhum exame de sangue, imagem, fizeram apenas o exame clínico.
Uma semana depois, tive o terceiro surto no supermercado. Tive tonturas e vômitos, mas ao ser levado para o hospital, fui perdendo todos os movimentos do lado esquerdo do corpo. Em poucas horas, o quadro se agravou, tive paralisia facial, fiquei com a fala embolada e visão dupla.
O clínico geral que me atendeu disse que eu estava tendo um AVC. Posteriormente, um neurologista assumiu o caso, disse que seria necessário fazer alguns exames para fechar o diagnóstico.
No dia seguinte comecei a fazer pulsoterapia com corticoide e o neuro falou para o meu pai que tudo indicava que eu estava com esclerose múltipla. Até então não sabia de nada, achava que tinha sofrido um AVC, como o primeiro médico havia dito.
'Achei que era o fim para mim'
Fiquei oito dias internado, no dia da alta, o neurologista me falou que estava com uma doença chamada esclerose múltipla e me deu um encaminhamento para passar com dois especialistas em Salvador.
Não sabia nada da doença, mas naquele momento perdi o chão, pensei que ia morrer em pouco tempo e que era o fim para mim.
No dia seguinte, fui para Salvador. Passei em consulta separada com os dois especialistas e ambos confirmaram o diagnóstico e me explicaram que a doença não tem cura, mas tem tratamento e controle. Minha preocupação era saber se iria recuperar os movimentos do lado esquerdo do corpo. Um deles explicou que poderia não recuperar, recuperar parcialmente ou totalmente.
Apesar de sentir o mundo desabando na minha cabeça, disse que no que dependesse de mim, se tivesse 50% ou 1% de chance, iria lutar pela minha reabilitação com a mesma disciplina e determinação. Uma semana depois comecei a fazer fisioterapia todos os dias, fiz fonoaudiologia por um tempo e dois meses e meio após o diagnóstico, consegui a medicação de alto custo pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
No começo, meu emocional ficou bastante abalado. Será que vou voltar a andar, vou ficar com alguma sequela? Tinha muitas dúvidas, mas o apoio da família foi fundamental para seguir em frente com esperança.
Aos poucos meu quadro foi progredindo, minha visão se normalizou, a fala melhorou e, em três meses, já conseguia ficar em pé e dar alguns passos devagar, mas ainda um pouco desequilibrado. Em seis meses, recuperei os movimentos completamente, foi uma alegria tremenda e a primeira, de muitas superações.
Empurrãozinho da esposa
Fazia acompanhamento médico regular, o neurologista sempre recomendava fazer uma atividade física para ajudar na disposição, para fortalecer a musculatura e ter mais firmeza ao andar. Sempre dava alguma desculpa: 'Ah, vou fazer', 'Não se preocupe', 'Preciso achar tempo'.
Essa enrolação levou cinco anos até eu começar a fazer um exercício físico, incentivado pela minha esposa. Ela também me cobrava, dizia que eu estava gordo —fui de 75 kg para 87 kg nesse período—, que minha alimentação estava ruim e que a atividade ia ajudar no tratamento da esclerose. Nunca mais tive nenhum surto, mas convivia com alguns sintomas, como incontinência urinária, fala embolada, formigamento no corpo, dormência nas mãos, rosto e pés, e muita fadiga.
Um dia ela chegou em casa e falou que estávamos inscritos numa prova de corrida de rua de 5 km dali a três meses. Falei: 'Você só pode estar de brincadeira, como vou correr?'. Ela disse: 'Fica tranquilo, a partir de amanhã você começa a treinar comigo'. Ela já saía para fazer caminhadas e exercício funcional.
No outro dia, às 6h da manhã, fomos para a orla caminhar. Comecei com 10 minutos, aumentei para 20, 30 e fui intercalando com pequenos trotes. Em julho de 2015 participamos da prova, foi emocionante.
Daquele dia em diante me empolguei e adotei a corrida como o esporte da minha vida. Passei a treinar seis vezes por semana, uma hora por dia e a percorrer distâncias mais longas. No início, assistia a vídeos de corredores na internet ensinando a forma correta de correr, como ganhar ritmo e evitar lesões.
Também me inscrevi num grupo de corrida em que tinha o acompanhamento de um professor de educação física —ele me mandava a planilha semanal de treinos. Além disso, comecei a fazer musculação três vezes por semana para ajudar no meu condicionamento físico.
Os efeitos do exercício físico foram benéficos para minha saúde física e emocional. A fadiga e o formigamento diminuíram, emagreci 15 kg, minha autoestima melhorou e tive sensação de bem-estar.
O neurologista ficou feliz quando contei as novidades, ele disse que estava no caminho certo e que o esporte só iria somar ao meu tratamento junto com a medicação. Perguntei para ele se teria algum problema em participar de meia-maratona ou maratona, se isso poderia impactar negativamente na esclerose, ele disse que não, que o importante era respeitar os limites do meu corpo.
Com a liberação dele, comecei a minha preparação, que não teve nada de diferente por causa da doença e nenhum tipo de acompanhamento mais de perto. A única mudança que fiz foi na alimentação, com o auxílio de uma nutricionista e endocrinologista, para me ajudar a ter um melhor desempenho no esporte.
De 2015 a 2021, não parei mais. Participei de mais de 150 provas de corridas de ruas, 30 meia-maratonas, cinco maratonas e quatro ultramaratonas. Fiz minha primeira maratona em 2018, no Rio de Janeiro, aos 44 anos de idade.
Em junho de 2019, participei de um desafio no Rio de Janeiro em que corri 21 km no sábado e 42 km no domingo. No mesmo ano, no dia 16 de novembro, fiz minha primeira ultramaratona, na Chapada Diamantina, na Bahia. A distância original era 50 km, mas acabei fazendo 52 km porque errei o caminho. O trajeto passou por trilhas, vegetações, escaladas, rio —fiz em 9 horas e 40 minutos.
Ao concluir a prova, me tornei o primeiro brasileiro com esclerose múltipla a realizar uma ultramaratona. O sentimento foi de euforia e de gratidão a Deus por me capacitar e trazer esperança para outras pessoas.
'Boto a esclerose para correr'
O meu caso ganhou repercussão na cidade e na internet. Me perguntaram o que fazia de diferente. Respondi: 'Boto a esclerose múltipla pra correr'. Isso virou meu lema e grito de guerra. Em julho de 2020, participei de uma ultramaratona da Ultra dos Anjos Internacional, realizada pela Ultra Runner Eventos, de forma virtual em todo o país por conta da pandemia.
A corrida foi real, com regulamentos, regras, quilometragens e tempo estabelecidos. Todos os atletas foram monitorados por meio de aplicativos no relógio ou celular, interligados por GPS, que registrou tempo, distância e paradas. Ilhéus teve a participação de cinco corredores, cada um pôde escolher o seu percurso.
Fiz 135 km em 23 horas e 50 minutos. A cada 1 km, pedia nas redes sociais e grupos de WhatsApp a doação de 1 kg de alimento. A mobilização foi tão grande que, em vez de arrecadar 135 kg, arrecadei 660 kg de alimentos e doei para 66 famílias carentes.
Em setembro de 2020, fiz minha terceira ultramaratona, dessa vez 180 km em 42 horas e 50 minutos. Me lesionei no joelho esquerdo no km 130, andei durante 30 km e fiz os outros 20 km trotando bem devagar. Mesmo morrendo de dor, concluí a prova.
Em abril de 2021, fiz a quarta ultramaratona, 235 km em 52 horas e 20 minutos. Em todas as competições, fiz as paradas obrigatórias para descansar, me alimentar e me hidratar.
Ao longo dos anos, conheci muitos pacientes com esclerose múltipla que se entregaram à doença, à depressão, que achavam que eram incapazes de fazer algo de bom. A minha conquista não foi só minha, ela foi uma vitória contra a doença e os estigmas, para mostrar que não devemos nos limitar, mas nos superar. No meu Instagram (@netto_running), mostro minha rotina e encorajo outras pessoas.
Hoje em dia, a doença está estável, faço acompanhamento e exames a cada dois anos, continuo tomando a medicação. Receber o diagnóstico de esclerose múltipla foi um obstáculo que a vida me deu para me fazer enxergar oportunidades através das dificuldades e para me ensinar que devemos ter forças para seguir nossa jornada.
Se não fosse pela doença e pelo apoio e incentivo da minha esposa lá atrás, a quem agradeço muito, dificilmente teria trilhado esse caminho e me tornado um ultramaratonista."
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