Tatuagem, penteados e maquiagem ajudam a ressignificar traumas e lembranças
A professora e psicanalista Adriane Wollmann, 49, sempre gostou de desenhos no corpo e fez deles uma forma de ressignificar e marcar momentos importantes da sua vida. O primeiro nesse sentido foi uma homenagem à sobrinha, que ela considera como filha.
"Temos uma relação muito especial e, em 2016, decidimos fazer uma tatuagem igual. Escrevemos na pele algo que nos identificava: fé, coragem e amor", conta. No ano seguinte, a profissional descobriu um câncer de mama e, após a cirurgia para retirada do tumor e reconstrução mamária, ficou com uma grande cicatriz na região, que ia de um lado do peito até o outro.
"Quando vi, pensei: quero ter mais desenhos do que cicatrizes deixadas pela doença. Então, assim que pude, transformei uma tatuagem antiga que tinha na perna em uma fênix com duas rosas grandes saindo dela, para retratar o meu renascimento", explica.
Algum tempo depois, por uma complicação provocada pela medicação que tomava, teve de passar por outra operação, e que resultou na retirada do útero e dos ovários. "Perdi os órgãos do aparelho reprodutor feminino, mas em vez de me sentir murcha por dentro, tatuei flores no corpo", diz a psicóloga. "Fiz um girassol, para me lembrar que, ainda que não tenha sol todos os dias, tenho pessoas ao meu lado que me dão energia, e uma rosa com espinhos, porque a vida também nos fere."
As outras tatuagens que ela carrega, todas feitas após o diagnóstico de câncer, são o símbolo da Mulher-Maravilha e a expressão em francês ça arrive (isso acontece). A próxima virá em breve, e para registrar outra etapa vencida.
"Tive covid-19 recentemente. Foi branda, mas ainda assim deixou uma marca em mim e, agora, estou atrás de um desenho que retrate este momento. Talvez faça uma borboleta", adianta. "Com as tatuagens, ressignifico processos de sofrimento, de dores. As imagens que escolho representam que a vida segue e que pode ser florida, apesar de tudo."
Assim como Wollmann, muita gente recorre às modificações na aparência, e não apenas tatuagem, mas também um novo corte, penteado ou cor de cabelo e até cirurgia plástica, para superar uma dor ou trauma, prestar uma homenagem ou ainda como forma de empoderamento ou propriedade corporal, celebração de conquistas, expressão de identidade e demonstração de crescimento pessoal.
"São muitos os tipos de marcas que as pessoas costumam fazer, e é grande a variedade de motivos que levam a isso, positivos e negativos. Tudo depende da história singular de cada um", avalia Daniel Omar Perez, psicanalista e professor de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "Esse comportamento pode tanto fazer parte da ordem do imaginário, da fantasia, para prender um momento efêmero de felicidade e fazer um registro de memória, quanto da busca por pertencimento, melhora da autoestima e alívio das angústias e das dores do corpo", complementa.
Jaroslava Varella Valentova, antropóloga e professora-doutora do IP-USP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), relata que as alterações na aparência podem ser uma resposta a uma mudança interna, bastante significativa e individual, que ocorre em momentos importantes, como perda ou troca de emprego, separação ou encontro de um novo amor, morte de uma pessoa querida, nascimento de um filho e descoberta ou cura de uma doença.
"Claro que as pessoas respondem de maneira diferente aos acontecimentos, mas muitas têm o desejo de refletir no exterior, no corpo, algo que está acontecendo dentro delas. É uma forma de demonstrarem a felicidade que estão sentindo ou, o que é mais comum, de colocarem para fora tudo de ruim que estão passando. E isso geralmente é bom, pois melhora a autoimagem e transforma os sentimentos", afirma a especialista, acrescentando que o IP-USP está realizando justamente um estudo sobre o tema.
O objetivo é averiguar como uma mudança na face feminina —neste caso, através da maquiagem— influencia a percepção pessoal e de terceiros. Segundo Valentova, na primeira etapa, que já foi concluída, 50 mulheres foram maquiadas por um profissional com cinco diferentes níveis de pintura, do mais básico até o mais elaborado.
"Após cada um, elas responderam um questionário, avaliando como estavam se percebendo. O resultado foi que essa simples alteração visual teve um efeito benéfico sobre a autoestima. Quando maquiadas, as participantes indicaram que se sentiam melhor, mais confiantes e bonitas", relata.
Agora, o estudo está na segunda fase, na qual fotografias das mulheres serão analisadas por outros voluntários, a fim de verificar se suas "novas" aparências também têm efeito aos olhos de desconhecidos —os resultados deverão ser divulgados ainda este ano.
Efeito duradouro
No Reino Unido, uma pesquisa realizada há alguns anos por Viren Swami, professor de psicologia social na Anglia Ruskin University, examinou a imagem corporal das pessoas antes e depois de fazerem uma tatuagem. A descoberta foi a de que a ansiedade e a insatisfação com a aparência diminuíram significativamente logo após suas peles terem sido pintadas.
Os participantes também relataram apreciação corporal maior e aumento da autoestima três semanas após a realização do procedimento, o que indica que os efeitos da mudança não são simplesmente um reflexo da empolgação momentânea, e sim algo duradouro.
"O corpo deve ser sempre uma fonte de prazer e bem-estar. Então, quando a pessoa faz nele alguma alteração buscando conforto, e de forma saudável e em sintonia com a sua mente e personalidade, isso é positivo e muito provavelmente o efeito será sentido por um longo período", afirma o psiquiatra Carlos Francisco Almeida de Oliveira, assessor na Gerência de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado do Piauí.
E ele indica que isso se consegue até mesmo com as pequenas alterações e não definitivas, como se maquiar ou colocar um adereço diferente. "Essas também são maneiras de flexibilizar as situações vividas e se sentir melhor diante delas. Mas é sempre importante que exista uma simbolização para que as ações não sejam à toa", aponta.
Quando o comportamento se torna prejudicial
Apesar de muitas vezes representar empoderamento e ressignificação, melhora da autoestima e ser uma forma saudável de encerrar ou iniciar um ciclo, as mudanças corporais não devem ser feitas completamente no impulso —em especial as permanentes e mais invasivas— e com a certeza de que irão transformar a vida.
"As pessoas têm autonomia sobre seus corpos, claro, mas, antes de qualquer alteração, é importante que parem e analisem se aquilo vai mesmo ser benéfico, deixá-las felizes, ou se não se trata apenas um mecanismo de fuga da realidade. Transferir todas as expectativas para uma abdominoplastia, por exemplo, não é o jeito certo de lidar com as situações da vida", afirma Oliveira.
Além disso, é preciso ter cuidado para que esse comportamento não se torne prejudicial e excessivo. "Os sinais de alerta são quando as alterações começam a afetar o pessoal ou o profissional e consomem grande parte do tempo e do dinheiro do indivíduo. Essas transformações devem sempre trazer bem-estar e não provocar sofrimento e ansiedade, então é fundamental ficar atento para não passar do ponto", indica Valentova.
Perez completa: "Às vezes, em um momento de euforia ou irritação, a pessoa acha que precisa daquela transformação corpórea, mas depois acaba se arrependendo. Pode acontecer também de se tornar dependente. Para evitar qualquer um desses casos, o recomendável é fazer uma elaboração psíquica antes de qualquer tipo de intervenção mais radical, principalmente cirurgias".
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