Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


'Mommy brain': entenda como o cérebro das mães é afetado com a gravidez

Estudos evidenciam que a maternidade é acompanhada por mudanças cerebrais com reduções no volume da massa cinzenta - iStock
Estudos evidenciam que a maternidade é acompanhada por mudanças cerebrais com reduções no volume da massa cinzenta Imagem: iStock

Letícia Simionato

Colaboração para VivaBem

22/11/2021 04h00

Desde a primeira gravidez, a psicomotricista Lidiane Zago, 41, percebeu que houve uma piora da memória e da capacidade de concentração. Hoje, com dois filhos, Miguel, 9, e Olívia, 3, o problema continua. "Diziam que era da gravidez, mas não passou. Hoje, me vejo dependente de agenda e lembretes no celular para não me esquecer de coisas importantes. Antes de ter filhos, não era necessário", diz.

Segundo ela, são muitos episódios ao longo da semana: "Teve um dia que meu filho ficou em casa assistindo remotamente a aula. Deu o horário dele sair da escola, eu o chamei, ele entrou no carro e eu fui 'buscá-lo'. Só me dei conta quando chegamos na escola e ele me perguntou o que estávamos fazendo ali", conta.

A empresária Bárbara Peres, 33, faz relatos semelhantes. Ela tem dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos. "Um dia tinha esquecido as chaves do carro, subi no apartamento para pegar e esqueci o que ia fazer; voltei para o carro sem as chaves. Além de situações corriqueiras, como trocar os nomes das crianças e esquecer de desligar o forno depois de assar bolo", conta.

Zago e Peres não estão sozinhas. Muitas mulheres experimentam o que a ciência chama de "mommy brain" (cérebro de mãe, em português), condição em que a cognição e memória das mães, desde a gravidez até os primeiros anos de vida dos filhos, sofrem um declínio.

"Não existe ainda um diagnóstico formal ou uma patologia que a gente chame de 'mommy brain'. Esse termo é utilizado para se referir a um conjunto de sintomas, como queixas de memória e desatenção. Essas alterações nem sempre vão trazer prejuízo e costumam ser transitórias", explica Catarina Moraes, psiquiatra, professora do curso de medicina da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e mestranda em neuropsiquiatria e ciências do comportamento.

Como o cérebro da mulher muda com a chegada dos filhos?

O cérebro da mulher muda intensamente na gestação e no pós-parto, tanto a nível estrutural como funcional. No entanto, isso tem uma finalidade nobre: preparar a mãe para ser capaz de cuidar do bebê, permitindo o desempenho de funções associadas ao cuidado.

"Algumas áreas do cérebro ficam mais atrofiadas e outras acabam ganhando ainda mais volume em função da chegada de um filho. Do ponto de vista evolutivo, isso acontece para preservação da espécie. A mulher, para proteger o bebê, assume determinadas funções e fica com um hiperfoco na criança", explica Camila Pupe, médica do Hospital Badim e professora de neurologia da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Moares explica que essas alterações cerebrais não são consideradas necessariamente patológicas e, muitas vezes, não vão trazer prejuízo. "Antigamente se acreditava que o cérebro, uma vez formado, era estático. Hoje em dia, a neurociência vem mostrando que o cérebro é extremamente plástico, dinâmico, constantemente modificado pela experiência e pelos estímulos —inclusive o hormonal, que ocorre na gravidez. Para otimizar o funcionamento, o cérebro escolhe manter algumas comunicações entre neurônios em detrimento de outras. Esse fenômeno é chamado de "poda neuronal". Dessa forma, sinapses menos utilizadas ou menos necessárias para o paciente são reduzidas".

Pesquisas mostram que a gravidez traz reduções no volume de massa cinzenta, principalmente nas regiões do cérebro que respondem aos bebês. Além disso, as mudanças no volume preveem medidas de apego materno pós-parto, sugerindo um processo adaptativo que serve à transição para a maternidade, podendo durar, pelo menos, dois anos após a gravidez.

Dessa forma, é esperado que o foco da atenção da mulher mude, gerando uma maior distração para questões profissionais, por exemplo, pois ocorre uma priorização da atenção para as necessidades dos filhos.

Amarrar laço no dedo para se lembrar; lembrete; dedo; esquecimento; esquecer - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
As mudanças hormonais são uma das causas das alterações cerebrais durante a gravidez e no pós-parto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Hormônios e acúmulo de tarefas

Uma das causas das alterações cerebrais é a atuação hormonal biologicamente inerente à gravidez. Na gestação, existe um grande aumento de estrogênio, progesterona, alopregnanolona e, no pós- parto, da ocitocina.

Além da questão hormonal, é importante ressaltar outro fator importante que influi no "mommy brain": o acúmulo de tarefas, que acaba gerando uma sobrecarga física e mental em razão de todas as funções que a mulher acaba exercendo. Zago enfrenta o problema diariamente: cuida da casa e da saúde dos filhos; ajuda nos estudos; leva nas atividades extracurriculares; trabalha; estuda; além de manter uma vida conjugal e social. "Percebo os dias passando sem dar conta de que passaram. É tanta tarefa para um dia só que sinto que estou presa numa eterna segunda-feira", comenta.

A gestação pode ser muito desafiadora, mesmo quando desejada, e o pós-parto traz toda uma mudança de rotina, de horas de sono e de funcionamento familiar. É compreensível que existam muitos fatores que possam favorecer o pior desempenho cognitivo.

"O pós-parto é o período mais vulnerável na vida da mulher para o adoecimento mental, devido aos fatores psicológicos de ter de se adaptar a muitas situações diferentes como mudanças no corpo, mudança de rotina, de papel social, aumento de responsabilidades e acúmulo de tarefas. Assim é comum vivências de estresse, sobrecarga, autocobranças, blues puerperal e adoecimentos, como quadros depressivos, ansiosos, transtorno obsessivo-compulsivo, psicose", ressalta a psiquiatra Carla Zambaldi, professora-adjunta de neuropsiquiatria na UFPE (Universidade Federal do Pernambuco).

A falta de apoio familiar, dificuldade de acesso a serviços de saúde mental e dificuldade financeira também podem influenciar nas perdas de memória e cognição.

"Mommy brain" é algo ruim?

Não necessariamente é patológico e/ ou traz prejuízo. A mulher vai estar envolvida num processo de cuidado com o bebê, e o foco vira a sobrevivência da prole. "Muitas das alterações são uma otimização de função. Se você vê a interação de uma mãe e um bebê —não estou falando de uma mãe deprimida ou com transtorno de ansiedade, mas uma mãe com a saúde mental boa— mesmo ela cansada, com o sono partido, é possível ver uma sintonia. A mãe sabe quando o bebê quer mamar, está atenta a expressões faciais e barulhos. A mulher pode estar desatenta a ponto de deixar o celular na geladeira, mas o bebê faz uma vocalização diferente, e a mãe sabe o que é", afirma Moraes.

É importante ressaltar que muitas vezes observa-se pelo viés da expectativa da produção intelectual e laboral, como no caso da mulher que teve filho há quatro meses e não está conseguindo ter o mesmo rendimento no doutorado ou na empresa que trabalha. "Entendo que isso às vezes pode ser complicado para algumas situações em que a mulher está envolvida, mas ao mesmo tempo, a atenção está direcionada para a criança. É estratégico porque a criança precisa da mãe", completa Moraes.

Além disso, a mesma queixa cognitiva pode ser entendida de forma diferente em cada mulher, levando-se em conta o contexto, a expectativa profissional e o processo que a mãe está vivendo. "Se a gente vê uma mulher que está com quadro de depressão pós-parto, essa própria dificuldade de se concentrar pode ser muito mais assustadora. A mãe botou o celular no freezer e não estava encontrando, mas ela conta isso rindo. Já uma paciente deprimida pode ter vivido a mesma situação e pensar 'não sirvo mais para nada'", diz.

Boy looking at mother using digital tablet. Woman sitting with son at table in kitchen; mãe trabalha com bebê; mulher; home office; negra; bebê; criança - Morsa Images/Getty Images - Morsa Images/Getty Images
Pesquisas avaliaram que essas alterações são mantidas até seis anos após o parto
Imagem: Morsa Images/Getty Images

E os pais?

No homem, há menor probabilidade de ter esses efeitos, por conta do aspecto biológico, pois neles não acontecem as alterações hormonais que ocorrem na mulher. No entanto, com o nascimento de uma criança, um pai presente também tem sua rotina alterada e pode adoecer.

"Eles também podem ter dificuldade e esquecimentos porque o foco se torna outro. É como se fosse um computador, você abre mil abas ao mesmo tempo, uma hora você esquece, trava um pouco", comenta Yuri Busin, psicólogo, mestre e doutor em neurociência do comportamento.

Segundo Moraes, deve-se levar em conta que são diversos fatores associados, entre eles biológicos, culturais e psicológicos. "A experiência corporal da mulher cisgênero no contexto da gestação, lactação e toda influência hormonal não pode esquecida nesse processo. Entretanto, é possível observar na prática clínica que homens que têm filhos recém-nascidos também podem apresentar queixas cognitivas, ansiedade e cansaço, às vezes associadas a adaptação da nova realidade, nova rotina e novos horários de sono", afirma.

Com o tempo, passa?

Segundo os especialistas consultados, conforme os filhos forem ficando mais velhos, outros focos vão surgindo e, naturalmente, isso vai se remodelando de forma diferente por causa da plasticidade neural. Esse foco no bebê vai amenizando, e a mãe passa a ter outros interesses, outros focos de atenção.

No entanto, as mudanças cerebrais na mãe tendem a ser duradouras, e "pesquisas avaliaram que seis anos após o parto essas alterações são mantidas", comenta Zambaldi.

Fontes: Catarina Moraes, psiquiatra, professora do curso de medicina da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e mestranda em neuropsiquiatria e ciências do comportamento; Camila Pupe, médica do Hospital Badim e professora de neurologia da UFF (Universidade Federal Fluminense); Carla Zambaldi, psiquiatra e professora-adjunta de neuropsiquiatria na UFPE (Universidade Federal do Pernambuco); Yuri Busin, psicólogo, mestre e doutor em neurociência do comportamento, diretor do Casme (Centro de Atenção à Saúde Mental - Equilíbrio).