Por que as pessoas maltratam animais? É só pura maldade?
Em novembro deste ano, um caso envolvendo maus-tratos a 1.056 búfalos e 72 cavalos e éguas em uma fazenda em Brotas, no interior de São Paulo, ficou conhecido nacionalmente. Além de carcaças, no local havia centenas de animais com fome, sem água ou alimentos, em situação de abandono. Apesar de assustador, o caso não é isolado, e várias histórias como essa costumam aparecer nos noticiários.
O estranho é que homem e animal convivem desde o surgimento da Terra e, por isso, ambos fazem parte e têm direito de viver dignamente no mundo, mesmo porque a sobrevivência de um dependente da vida do outro. Além disso, a ciência já provou que centenas de espécies animais têm inteligência, emoções e relações sociais complexas tanto quanto o homem. Mas em que momento essa convivência passou a ser antagônica e hierárquica, chegando ao ponto do homem ser cruel com os animais?
"Creio que uma das perspectivas possíveis para se pensar sobre a crueldade com os animais deriva da longa história do pensamento filosófico e teológico no tratamento sobre os animais e a natureza como um todo. Em se tratando das religiões monoteístas, mais especificamente o cristianismo, existe uma relação ambivalente com os animais, sendo muito mais negativa ou omissa, e poucos são os que pensarão e terão uma relação ética com os animais", afirma Thiago da Silva Prada, doutorando em ciências sociais.
Essa ambivalência tem de um lado, segundo Prada, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que ao estabelecerem uma hierarquia entre os seres a partir de critérios de razão, consciência e perfeição, confirmam a utilidade dos animais para os seres humanos, que são superiores nesta escala, e, com isso, afirmam a possibilidade de morte dos animais em prol dos humanos. "No segundo caso", continua Prada, "temos São Francisco de Assis, que propunha uma integração e relação de irmandade e fraternidade com toda a criação divina, incluindo aí animais e vegetais".
O mesmo critério de racionalidade e consciência também é encontrado na filosofia, sobretudo na filosofia de Descartes, como explica Prada: "com sua dualidade entre mente/espírito e corpos/matéria, cria uma divisão entre os seres racionais, dotados de consciência e pensamento —que são os seres humanos—, de toda a realidade material e natural do outro lado que são regidas por leis físicas e naturais, colocando assim os animais dentro de uma dimensão mecanicista e meramente materialista".
De maneira muito geral, tanto a teologia quanto a filosofia ocidentais produziram, de um lado, um certo especismo, que diferencia a espécie humana em relação a todas as outras, colocando-a como superior, e de outro, um antropocentrismo, em que essa mesma natureza e todos os outros seres existem em função dos seres humanos enquanto úteis para a sobrevivência.
"Evidentemente, toda essa história do pensamento teológico e filosófico não implica necessariamente em uma liberação e aprovação para a crueldade com os animais, por outro lado, abriu um abismo entre nós e eles, permitindo uma exploração e, consequentemente, a crueldade sem limites e implicações éticas, algo que tem mudado nos últimos anos, sendo repensada nossa relação com a natureza e a nossa própria condição, agora seres naturais e pertencentes a esta mesma natureza", completa Prada.
O que configura maus-tratos
Antes de entrar no mérito da questão da crueldade, é preciso entender o que configura maus-tratos aos animais. No Brasil, crueldade, abuso e maus-tratos contra animais pode ser compreendida na Resolução nº 1.236, de 26 de outubro de 2018, que traz uma lista de situações que configuram maus-tratos, como agredir fisicamente ou agir para causar dor, sofrimento ou dano ao animal; abandonar animais; deixar de buscar assistência veterinária para o animal quando necessário; manter animal sem acesso adequado a água e alimentação; manter animal em local desprovido das condições mínimas de higiene; e utilizar animais em lutas (rinhas).
De acordo com a zootecnista Marina Gomes, esses são apenas alguns exemplos, mas, de forma geral, o CFMV (Conselho Federal de Medicina Veterinária) diz que maus-tratos é qualquer ato que provoque dor ou sofrimento desnecessário aos animais. É um crime de acordo com o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, e o artigo 225 da Constituição Federal Brasileira estabelece que cabe ao poder público e a toda sociedade "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".
Além das atividades intencionais que afetam a vida do animal, a omissão diante de uma atividade dessas também se configura como maus-tratos. "Um exemplo comum são as rinhas de galos ou de cães, em que pessoas assistem às brigas desses animais por entretenimento. Quem assiste a isso está sendo conivente e está compactuando com os maus-tratos aos animais", assegura João Almeida, da Proteção Animal.
Crueldade tem a ver com ambiente e com poder
A maldade, de acordo com o psiquiatra Luiz Cuschnir, consiste de uma ou mais ações que provêm da impossibilidade de um indivíduo acessar seus dons de amar, respeitar, acolher, considerar e se dedicar ao outro ou à vida. "Todos nós temos esse lado e tudo depende de como lidamos com ele e da consciência que temos para entender como nos habita e o que podemos fazer com isso".
Segundo ele, a pessoa projeta como o mundo se apresenta a ela, ou seja, se ela vive em um ambiente hostil, com relações que a frustram e agridem, pode usar o maltrato como alívio.
Conforme a psicóloga Karen Vogel, em psicologia se usa mais o termo perverso. "Perverso tem a ver com autocentrismo, com estar no controle do que é mais importante para mim em detrimento do outro. Quando uma pessoa é perversa, ela está realmente dentro de um mundo egoico, no qual sua satisfação é o que importa, com pouca conexão ou empatia com o sofrimento do outro", explica.
Vogel lembra ainda que a questão do poder é o centro dos perversos, porque de certa forma ele manipula para conseguir aquilo que quer, manipulando também os outros e os animais. "O homem tem poder sobre grande parte dos animais e, na perversidade, ele acaba achando que pode fazer o que quiser com esses seres, considerados mais frágeis, e utilizando-os ao seu bel prazer", reforça.
A bióloga Natalia Albuquerque também acredita ser algo relacionado à detenção de poder. "O humano gerar situações, sentimentos e práticas de sofrimento para com os outros animais tem a ver com deter o poder e a percepção desse poder, de que são seres superiores. Isso pode ser constatado nas caçadas, nas quais sentem ter o poder da vida do outro em suas mãos", diz.
Maus-tratos a animais é um importante ponto de alerta, pois pesquisas científicas mostram que existe uma conexão entre a crueldade contra os animais e a violência interpessoal, conhecida também como Teoria do Elo. "A ocorrência dos maus-tratos aos animais não é um fator isolado dentro da sociedade, sendo que uma pessoa que pratica violência contra um animal tem grandes chances de praticar também contra pessoas, principalmente aquelas mais vulneráveis, como idosos, crianças e mulheres", relata Gomes.
Almeida lembra que em um extremo estão as pessoas com transtornos psicológicos que se divertem ou sentem prazer com essa prática cruel, mas também existe um componente cultural muito forte que justifica e permite certas atividades, como tourada, rodeio em vaquejada. "Seja como for, os motivos estão relacionados com a histórica desvalorização dos animais, aos olhos de humanos sempre tratados de forma utilitarista, como recursos, como se fossem coisas e não seres com direito à vida, dando margem para o pensamento de que 'posso fazer o que quiser com aquilo que me pertence'. Felizmente, a ciência do bem-estar animal tem trazido muitas informações técnicas para o tratamento com os animais, inclusive comprovando que eles capazes de sentir e interpretar sensações positivas e negativas", diz.
A importância do animal na vida humana
Como seres que habitam o mesmo planeta, homens e animais precisam viver em harmonia para garantir o equilíbrio e a própria sobrevivência. "Os animais são extremamente importantes para nós, pois, embora diferentes, também somos animais, e aqueles são muito similares a nós. Além disso, dividimos e compartilhamos o planeta, porque este é um planeta para todos os seres, e todos têm direito ao seu habitat natural, daí a necessidade da preservação e do respeito pelo seu espaço. Se o ambiente se degrada, os animais desaparecem e todo ecossistema é prejudicado, nossa existência é prejudicada, porque não temos como viver no mundo em que esses animais não estejam", argumenta. Albuquerque.
Da mesma forma, Gomes ressalta a importância em reconhecer que o ser humano faz parte do reino animal e que não é uma espécie superior. "Não compreender isso está provocando uma extinção em massa, epidemias e pandemias, e estamos caminhando para um futuro com previsões assustadoras. Precisamos entender que a humanidade, e aqui falo das futuras gerações, e o restante dos animais têm os mesmos valores e direito à vida. A diferença entre nós e outros animais é que os animais fazem parte dos ciclos naturais e respeitam o equilíbrio, gerando condições para que a vida continue, já os seres humanos estão acabando com qualquer possibilidade de vida a longo prazo no planeta, inclusive a sua própria", argumenta.
A quem recorrer em caso de maus tratos
Para provar que alguém está maltratando um animal é preciso de evidências, como registro de fotos e vídeos ou testemunhas do ocorrido. Mas é possível denunciar maus-tratos apenas com um relato da situação, indicando o responsável e o endereço do local em questão. Isso está amparado pela Lei de Crimes Ambientais e pela nossa Constituição Federal.
Para quem quiser denunciar, os canais são:
- Polícia Militar pelo 190;
- Disque Denúncia pelo 181;
- Ir diretamente a uma delegacia e fazer um boletim de ocorrência;
- Ministério Público;
- IBAMA pelo número 0800 61 8080 ou pelo site;
- Frases, imagens ou qualquer outro tipo de ideias que façam apologia a maus-tratos na internet podem ser denunciadas;
- Também é possível denunciar em órgãos municipais competentes que são ligados à vigilância sanitária, zoonoses ou meio ambiente.
Fontes: João Almeida, diretor executivo interino da Proteção Animal Mundial no Brasil; Luiz Cuschnir, psiquiatra, psicoterapeuta na linha do Despertar do Ser e escritor; Karen Vogel, psicóloga, mestre em ciências pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e escritora; Marina Gomes, zootecnista, mestra e doutora em produção animal e especialista em bem-estar animal na Animal Equality; Thiago da Silva Prada, doutorando em ciências sociais pela PUCSP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), mestre em ciências sociais, com especialização em sócio psicologia e em filosofia contemporânea e história; Natalia de Albuquerque, graduada em ciências biológicas pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e doutora em psicologia experimental/comportamento Animal.
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