Por que algumas pessoas ficam 'sem filtro' ou com amnésia após endoscopia?
Algumas pessoas sentem medo de fazer a endoscopia digestiva. É um receio de, sem querer, contar um segredo, fazer algo e não se lembrar ou, ainda, agir sem nenhum tipo de "filtro".
Tudo isso pode mesmo ocorrer, mas não pela endoscopia digestiva em si —um exame que, com auxílio de uma microcâmera inserida pela boca, analisa a região do esôfago, estômago e duodeno (primeira porção do intestino delgado).
O que causa tudo isso são os sedativos usados para o paciente relaxar, dormir e não sentir nenhum desconforto durante o procedimento. Muitos brincam que, neste exame, as pessoas tomam o "soro da verdade".
Flerte com funcionário
Isso aconteceu com a dentista Julianne Robson, 29, em 2016. Moradora de São Luís (MA), ela estava com muito refluxo e, por isso, o médico pediu o exame. Quando acordou, um funcionário foi levá-la para a sala de recuperação.
"Na hora, achei ele muito bonito, porém, hoje em dia, não tenho certeza se ele era bonito mesmo ou se foi efeito da sedação", lembra.
Na época, Julianne namorava, mas fez elogios ao moço que trabalha na clínica. "Falei como ele era bonito e dei em cima dele. Só sei que ele riu muito e colocou as mãos no rosto. Mas não lembro o que falei. Depois, dormi um pouco até que me acordaram e me levaram até minha acompanhante", conta.
"Soro da verdade"? Por que isso acontece?
Os "culpados" são os remédios utilizados durante o procedimento. Cada hospital ou clínica utiliza medicamentos e doses diferentes, mas são todos sedativos —inclusive, utilizados em outros procedimentos e cirurgias. Na maioria das vezes, são administrados os benzodiazepínicos, grupo de remédios que diminuem a ansiedade, causam sedação e induzem ao sono.
Segundo Daniel Queiroz, chefe do serviço de anestesia para endoscopia digestiva do Hospital São Vicente de Paulo (RJ), esses remédios possuem uma ação inibitória no sistema nervoso central e, por isso, causam os efeitos. Além disso, têm duas características importantes.
"Uma delas é que, mesmo com doses mais baixas, com foco na ansiedade, eles podem levar à amnésia, ou seja, mesmo acordada, a pessoa pode não lembrar de nada do que aconteceu. Isso é útil neste sentido porque ninguém quer lembrar do procedimento", diz.
Isso explica por que algumas pessoas simplesmente esquecem de sair do hospital, chegar em casa e dormir. E é exatamente por isso que os pacientes só podem realizar o exame com um acompanhante maior de 18 anos.
No entanto, a outra característica, não tão benéfica neste caso, é que esses remédios podem causar confusão mental e agitação. "Nas fases iniciais da sedação, o paciente pode ficar agitado, agressivo, porque fica incapaz de agir com coerência. Isso pode ocorrer durante ou depois, quando acaba a sedação", diz.
De acordo com Queiroz, o efeito é muito similar ao que o álcool causa. A pessoa pode fazer coisas que, normalmente, ela não faria. "É aquela velha história que, depois de tomar o sedativo, ela vai contar segredos. Por isso as pessoas brincam que é o 'soro da verdade'", conta o anestesista.
Pensando de forma simplificada, é como se os pacientes perdessem os "sensores morais". A pessoa tem vontade de chorar, com medo do exame, mas ela inibe antes. Quando vem o efeito do sedativo, ela "coloca para fora" e chora.
Crise de riso e de choro
A jornalista Daniela Castro, 36, teve uma crise de riso depois da endoscopia digestiva em 2013: "Não consegui parar de rir". Ela precisou ser levada para uma sala até esperar que o riso descontrolado parasse.
"Escutei um dos atendentes dizendo que nós podíamos ficar lá até eu 'me controlar'. Minha madrinha conta que isso demorou 1h30 mais ou menos. Mas eu ainda saí rindo de lá, mesmo depois disso", diz Daniela, que é de Fortaleza (CE).
A jovem conta que até hoje, quando precisa realizar o exame, sabe que isso costuma acontecer —as enfermeiras também.
Por outro lado, Júlia Ribeiro, 25, estudante de São Bernardo do Campo (SP), acordou chorando quando foi realizar o procedimento. Por ter colite ulcerativa, uma doença inflamatória do intestino grosso (cólon), precisa realizar o exame anualmente, assim como a colonoscopia —outro tipo de exame endoscópico, mas que analisa o trato digestivo baixo (intestino grosso, cólon e reto).
"Não tenho problemas em fazer o exame porque, geralmente, durmo a tarde inteira depois. Então, já estava familiarizada, conhecia até as pessoas do lugar. Uma das enfermeiras que me atendeu foi muito legal e conversamos por bastante tempo antes do exame", lembra.
Mas quando acordou, Julia já estava bem desperta e começou a chorar na sequência. "Não queria ir embora. Disse para enfermeira que gostei muito de conversar com ela e queria bater mais papo. Não senti aquele soninho gostoso."
Medicamentos são de uso controlado
Como a administração dos medicamentos muda de acordo com os hospitais ou clínicas, há combinações que incluem opioides (que potencializam o efeito sedativo e evitam qualquer tipo de desconforto) e outros anestésicos.
"É possível utilizar diferentes sedativos e em diferentes combinações. Inclusive, o paciente pode ser sedado sem benzodiazepínico, utilizando outro medicamento que é o propofol, um anestésico geral", explica Queiroz.
E embora muitos pacientes gostem do sono após o procedimento, é importante ressaltar que esses remédios são controlados, vendidos sob prescrição médica, com uso em procedimentos minimamente invasivos ou em cirurgias no ambiente hospitalar.
Se usados em grandes quantidades, sem orientação, podem causar diversos efeitos colaterais. Em casos extremos, pode levar à parada cardíaca e, consequentemente, à morte.
Por isso, toda sedação necessita de monitorização —respiratória e circulatória— e equipamentos para oxigenar e ventilar pacientes que possam necessitar. Idosos, pessoas com doenças crônicas, como obesidade, muito abaixo do peso, ou com algum grau de comprometimento respiratório, entre outras, devem fazer o exame preferencialmente no hospital.
"Este grupo pode, eventualmente, ter complicações durante um exame endoscópico. No ambiente hospitalar, temos todo o suporte de uma UTI [Unidade de Terapia Intensiva] para auxiliar em qualquer intercorrência que possa ocorrer", explica Henrique Perobelli, cirurgião e gastroenterologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.
Tempo de recuperação
Camila de Oliveira fez o procedimento em 2019, pois tinha suspeita de gastrite. Após a endoscopia, ela ficou cerca de 30 minutos em repouso —que é a média, mais ou menos, que uma pessoa espera.
No entanto, isso também pode variar de acordo com o perfil de cada paciente. Se a dose de sedação necessária for maior, é provável que ele passe mais tempo na sala de recuperação.
Mas o procedimento em si é rápido, segundo Herbeth Toledo, endoscopista, cirurgião e vice-presidente da Sobed (Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva), de Maceió (AL).
"Ele dura entre 10 e 15 minutos. Na sala de recuperação, geralmente a pessoa passa cerca de 20 a 30 minutos e já pode ir para casa com o acompanhante", diz.
Foi exatamente o que Camila, estagiária de Santa Maria (RS), fez. Ao lado da mãe, ela passou esse tempo no local e disse que não se lembra de quase nada.
"Mandei várias mensagens no WhatsApp, mas não lembro. Depois, conversei com uma paciente do lado, mas ela estava mais quieta. Minha mãe brincou que, mesmo sedada, eu não parava de falar", diz.
De acordo com os especialistas, os pacientes devem ficar de repouso por 24 horas para que os efeitos dos sedativos passem. Isso costuma ocorrer de forma gradativa, ao longo do dia. Por isso não é indicado tomar grandes decisões nesses momentos.
"A mensagem que deve ficar é que esse exame é seguro e confortável. Normalmente, a pessoa não sente nada e pode ir para a casa em pouco tempo, sem dirigir, andar de bicicleta ou moto", reforça Toledo.
Quem deve fazer a endoscopia digestiva?
Segundo os médicos, a indicação principal envolve sintomas como dor no estômago, tosse excessiva que pode indicar refluxo, queimação, perda de peso, entre outros sinais na região do aparelho digestivo alto.
O principal objetivo é avaliar possíveis lesões inflamatórias, como gastrite, esofagite e duodenite, além do rastreio de tumores nas regiões.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.