Dúvida, preconceito e prisão: chilenos contam como é usar maconha medicinal
Há seis anos, a Câmara dos Deputados do Chile aprovou o projeto de lei que descriminaliza o cultivo da maconha e seu consumo privado para fins espirituais, medicinais e recreativos. Desde então, a proposta, que tramita agora no Senado, permite que os cidadãos chilenos carreguem quantidades menores que dez gramas, ou cultivem em sua própria casa, no máximo, seis plantas de cannabis sativa. Já as pessoas que precisam usar a maconha para fins medicinais devem ter receita médica.
A chilena Brenda Castillo, 47, é mãe de Martin, 19. O jovem nasceu com paralisia cerebral —quadro de lesão neurológica permanente e não progressiva que afeta, principalmente, a motricidade da criança— e até completar dez anos de idade, convulsionava dezenas de vezes ao dia.
''As crises duravam cerca de uma hora e tinha que recorrer aos medicamentos como diazepam e injeções de midazolan para conter os ataques e depois levá-lo ao hospital'', conta Brenda à reportagem de VivaBem.
Após inúmeras consultas com médicos na tentativa de amenizar as crises convulsivas do filho, já que os medicamentos da classe dos benzodiazepínicos não adiantavam mais, Brenda, que vive na cidade de Chillán, na região de Bío-Bío, resolveu recorrer a medicina alternativa com tratamento à base de canabidiol, conhecido popularmente como CBD.
A substância é extraída da planta cannabis sativa e atua no sistema nervoso central, apresentando potencial terapêutico para o tratamento de doenças psíquicas, crônicas ou neurodegenerativas.
O teste em si mesma antes de dar ao filho
''Na época, vi uma reportagem na televisão sobre a Fundação Daya, que defende o uso medicinal e recreativo da maconha, e fui direto a Santiago buscar mais informações referente ao tratamento. A ONG me forneceu todas as explicações sobre a extração do óleo da planta, como preparar, cultivar e ministrar as doses ao meu filho'', lembra a chilena, que no início não acreditou no potencial da planta.
Entre os compostos medicinais da planta da maconha estão os fitocanabinoides, que é um tipo de canabinoide sintetizado naturalmente da droga. Embora tenham sido identificadas cerca de 100 dessas substâncias, as mais importantes são: THC, canabidiol, canabinol e canabicromo, que atuam como analgésico, anti-inflamatório, ansiolítico, sedativo, antibiótico, entre outras propriedades.
Brenda explica que seu filho Martin faz uso do medicamento a base de canabidiol há 9 anos e que os resultados são positivos. Pela manhã, ao despertar, o jovem toma 6 gotas do produto (com THC mais concentrado) e no entardecer repete a mesma dose. Já, antes de dormir, outra gota é administrada debaixo da língua.
"Notei a diferença logo nos primeiros meses. O número de convulsões diminuiu, ele teve melhora no sono, pois antes não conseguia dormir. Martin deixou de convulsionar após tomar o CDB e agora convulsiona apenas se apresenta uma enfermidade, ou se tem febre, ou algo assim'', afirma a mãe, que antes de administrar o canabidiol pela primeira vez ao filho, experimentou o produto.
''Vou ser o coelho de laboratório. No início estava muito assustada, pois temia que pudesse dar alguma reação a Martin, algum dano ao coração, entende? Então experimentei durante uma semana e sentia sono, dormia bem. A gente arrisca de tudo para dar uma melhor qualidade de vida para um filho'', conta.
Há alguns anos, Brenda cultivava as plantas de maconha no pátio de sua residência, mas desde que suas mudas foram furtadas, atualmente são semeadas em estufas indoor, ou seja, espaços feitos para se cultivar plantas internamente (dentro de casa, por exemplo) com luz e refrigeração adequadas para cada tipo de semente.
"Costumo comprar as sementes em grow shops —lojas especializadas e autorizadas para a venda do produto. Com uma planta de maconha extraio o CBD por um ano para o tratamento medicinal do meu filho. Meus vizinhos sabem que cultivo para o tratamento do Martin, com objetivo medicinal. A lei 20.000 pune o tráfico de drogas, mas não o cultivo de plantas por pacientes que realmente necessitam do canabidiol. Não estou traficando. Quando ocorre alguma denúncia à polícia, de pacientes usando a droga para consumo próprio, a Fundação Daya se coloca à disposição e os ajuda com advogados. A lei é muito ambígua'', lamenta a chilena.
No começo, preconceito
Silvia Hernandes, 40, também foi, por muitos anos, paciente da Fundação Daya e hoje trabalha como assistente social na ONG. Muito antes de assumir o cargo, ainda na juventude, foi diagnosticada com fibromialgia, síndrome clínica que se manifesta com dor pelo corpo todo, principalmente na musculatura.
Aos 21 anos, contraiu meningite viral e em 2018 sofreu um grave acidente de trânsito em que quebrou vários ossos do rosto. Ela teve que se submeter a 16 cirurgias reparatórias da face, além de colocar prótese de titânio.
''Em consequência do acidente, não respiro mais pelo nariz, tenho pouco paladar e dores horríveis ao mastigar. Cheguei a tomar 26 medicamentos diários para conter a dor, a insônia e a depressão'', lembra.
Incentivada na época pelo seu ex-companheiro, Silvia, hesitante, buscou ajuda na Fundação Daya, em sua região, e optou pelo tratamento à base de canabidiol. Segundo a chilena, os efeitos da droga foram eficazes e em dois anos, ela conseguiu, com muito esforço, se desfazer dos medicamentos químicos.
''No começo, tinha um certo preconceito sobre o uso do canabidiol, mas hoje em dia tenho uma percepção diferente. Antes de me alimentar, preciso consumir CBD para aliviar as dores que sinto ao mastigar. São dores neuropáticas severas, crônicas. Uso o CBD pela manhã, à tarde e antes de dormir e me sinto bem melhor'', conta.
Antes do tratamento alternativo à base de cannabis, a paciente diz que tomava tramadol diariamente, de quatro em quatro horas. Trata-se de um analgésico da classe dos opioides, cuja estrutura é semelhante à morfina.
O trabalho na Fundação Daya
Depois de aderir ao tratamento com cannabis, Silvia começou a trabalhar como assistente social na Fundação Daya em Chillán. Há seis anos na ONG, Silvia afirmou que atualmente há três centros de tratamento com cannabis abertos no país. ''Temos três locais de atendimento espalhados no Chile. Um em Chillán, outro em Quilpué, na região de Valparaíso e outro em Santiago, a capital. Esses locais atendem milhares de pacientes que necessitam, por recomendação médica, usar canabidiol'', explica.
Silvia ressalta ainda que cada unidade da Fundação Daya tem seus próprios recursos financeiros provindos de doações de empresários, workshops de cultivo e preparação do óleo de maconha, além das consultas com médicos, terapeutas, fonoaudiólogos, entre outros profissionais.
"É muito importante ter uma equipe multidisciplinar junto ao tratamento. Não é somente consumir a cannabis e sim, nos preocupamos em fazer um acompanhamento contínuo com cada paciente para que ele se sinta seguro durante o processo. Uma vez que a pessoa é atendida e avaliada por um médico, ela recebe a receita e decide se compra o CBD na farmácia ou se ela mesma cultiva e prepara seu medicamento", afirma.
Nas farmácias do Chile é comum encontrar nas prateleiras medicamentos à base de cannabis. Os preços de um frasco do óleo contendo 30 ml variam entre 18 mil pesos chilenos (cerca de R$ 120) e 80 mil pesos chilenos (cerca de R$ 535), dependendo da concentração de canabidiol e THC.
Vale lembrar que o paciente precisa apresentar a receita médica. No entanto, dependendo do laboratório, um pequeno frasco de CBD pode custar mais de 600 mil pesos chilenos (cerca de R$ 4.000).
Canabidiol para borderline
Camila Barra Cárdenas, 37, estudante de engenharia de administração, utiliza o óleo de canabidiol há 6 anos para tratar ansiedade e transtorno de personalidade borderline —uma desordem mental grave caracterizada por um padrão de instabilidade contínua no humor e no comportamento.
Antes de experimentar os benefícios da planta de maconha, Camila fazia uso contínuo de fortes medicamentos como hemifumarato de quitiapina, lamotrigina e clonazepam. No período do tratamento sentia muito sono e dificuldade de concentração, principalmente ao estudar.
"Não rendia em sala de aula, tinha muito sono devido aos medicamentos. Então comecei a me tratar com canabidiol. Aos poucos, com acompanhamento médico, fui me desfazendo dos remédios químicos e usando apenas o CBD'', explica.
Camila faz uso do óleo de canabidiol em gotas a cada 8 horas durante o dia e como alternativa ingere CBD de forma comestível, como barras de frutas, balas, biscoitos, chocolates e waffles. Foi na Fundação Daya, por meio de workshops, que ela aprendeu a cultivar e preparar seu próprio medicamento.
''Também produzo em casa o creme a base de canabidiol, porque às vezes, quando me sinto tensa, os músculos se contraem, então o creme me relaxa. Minha mãe também utiliza o produto porque tem uma hérnia na altura do quadril que causa muita dor, e o creme alivia'', enumera a estudante.
Suspeita de tráfico de drogas
Em fevereiro deste ano, a paciente da Fundação Daya, Camila Barra Cárdenas foi detida em casa pela polícia chilena, suspeita de tráfico de drogas. Segundo a estudante, os agentes invadiram sua residência, sem ordem judicial, e apreenderam suas seis plantas.
"Possuía quatro plantas de maconha e minha mãe, outras duas. Fomos denunciadas por um vizinho e a polícia levou tudo, inclusive os cremes que produzo. Fui encaminhada para a delegacia algemada e me disseram que estava presa por cultivo ilegal de maconha. Não esperava isso, inclusive tinha comigo todas as receitas médicas. Me acusavam de traficante, foi horrível'', revela.
Diante da situação, Camila responde judicialmente, em liberdade, pelo cultivo ''ilegal'' de maconha e tráfico de entorpecentes. A ação policial fez com que chilena retornasse as sessões de terapia com psicólogo e psiquiatra.
Além disso, voltou a tomar os remédios químicos. Atualmente, a lei 20.000 penaliza quem distribui, produz, comercializa e trafica entorpecentes, no entanto, permite o consumo pessoal e o plantio de maconha autorizado em condições específicas, como o uso medicinal com receita médica.
Na avaliação do médico da Fundação Daya em Chillán, Marcelo Verdugo Sepúlveda, a lei 20.000, instaurada no Chile é dúbia. ''A lei afirma que está justificado o uso da cannabis quando é pessoal ou medicinal, por um certo tempo, mas não fala nada sobre o cultivo, ou seja, como obter a maconha. Há uma corrente em que nós, médicos, nos colocamos um pouco mais criativos, se está aprovado o uso medicinal, quem mais que nós mesmos para outorgar a autorização, mas não está escrito em nenhuma parte que a autorização tenha que ser emitida por nós. Estamos tratando de dar uma interpretação à lei e felizmente em um juízo, o atestado médico é válido. Atualmente, a prescrição médica está sendo tomada em conta no juizado'', conta o médico.
Como é a situação no Brasil?
No Brasil, o uso de produtos derivados da maconha para fins medicinais, como o tetra-hidrocanabidiol (THC) e o canabidiol (CBD) foi regulamentado pela Anvisa em abril de 2020. No entanto, o cultivo em território nacional ainda é proibido. Atualmente, existem sete produtos à base de cannabis aprovados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Conforme explica Cesar Camara, doutor em ciências pela USP (Universidade de São Paulo) e CEO da Biocase Brasil, empresa pioneira na divulgação e estudo da medicina canabinoide no país, a maioria dos produtos vendidos no Brasil tem menos 0,3% de THC.
''São produtos totalmente seguros, tanto em termos de dosagem, interações medicamentosas, quanto em não causar dependência química. Existem evidências muito boas para o tratamento da ansiedade, tanto crônica quanto ansiedade antecipatória, seja para falar em público, ou aquela ansiedade do dia a dia também'', diz.
Camara também ressalta que os canabinoides são uma importante ferramenta na gestão do paciente com dor crônica. ''Qualquer tipo de dor crônica, ao usar o medicamento, o paciente apresentará uma efetiva resposta ao tratamento, porque os canabinoides atuam nas dores inflamatórias e dores neuropáticas periféricas, e com o resultado já passa a apresentar uma melhor qualidade de vida'', finaliza o médico.
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