Sem amizades por aí? Quase metade das pessoas diz não ter amigo de verdade
Você conseguiria responder, de bate-pronto, quem é seu melhor amigo ou amiga? Pois saiba que, para muita gente, a amizade verdadeira se tornou praticamente extinta.
De acordo com uma pesquisa recente feita com com 48.600 pessoas, em 26 países, quase metade dos entrevistados (46%) disse não possuir "amigos de verdade". Os números vêm de um relatório publicado pela rede de agências de publicidade McCann Worldgroup em parceria com a revista online norte-americana SELF Magazine.
O relatório pretendia entender o significado do conceito de bem-estar para as pessoas, mas acabou revelando uma crise nas relações de amizade e uma grande preocupação sobre ficar sozinho. Cerca de 77% dos entrevistados acreditam que as conexões emocionais já estavam mais fracas em 2019, antes mesmo de a covid-19 surgir, e isso potencializa a sensação de desconexão e isolamento.
Mas afinal, por que manter —ou não— laços de amizade impacta tanto na existência de um indivíduo? A resposta começa pela seguinte frase: nossa natureza é social.
"A relação que temos com outros seres humanos é imposta desde o nascimento e, dentre os mamíferos, somos os mais dependentes de cuidados e que precisam deles por mais tempo para assegurar a sobrevivência", afirma a psicóloga Renata Marques Silva, da DaVita Serviços Médicos.
Especialista no atendimento clínico de adultos por abordagem cognitiva-comportamental, Silva explica que a mente humana vai se constituindo e povoando a partir da comunicação com aqueles da mesma espécie. "É comum a busca idealizada pelo outro nas relações, na esperança de encontrar cumplicidade, companheirismo e identificação", continua.
Qual foi o efeito da pandemia nas amizades
Tal como exemplificou o estudo feito pela McCann Worldgroup, a psicóloga também sentiu o efeito da pandemia nas expectativas de relacionamento dos pacientes que atende. "Houve um impacto em nossa relação com a solidão. O principal ponto é que a pandemia nos obrigou a experimentar a solidão de estar no mundo, encarando o fato de que nascemos e morremos sozinhos, de que precisamos descobrir quem somos, qual nosso propósito e de nos questionarmos sobre a qualidade da vida que temos", afirma.
Segundo a especialista, com essa solidão percebida e sentida, diversos cenários de vulnerabilidade foram expostos, o que exigiu estratégias para a manutenção dos vínculos. "Percebo que as pessoas estão preocupadas em saber com quem elas realmente podem contar e quem pode contar com elas. A crise sanitária, política e humanitária que vivemos em nosso país trouxe à tona o melhor e o pior das pessoas, e isso também gerou conflitos e rompimentos", diz.
Essa reavaliação dos laços e a busca por propósito também trazem à tona um tema que muita gente evita discutir: o medo de ficar sozinho: "Percebo as pessoas descobrindo a diferença entre seguidores e amigos", diz Silva. "Até porque a solidão e as situações de ameaça à vida vivenciadas durante a pandemia podem fazer muitas pessoas recalcular a rota em busca de suas verdades e de relações que façam diferença. Para mim, parece um movimento em busca por autenticidade e significado na vida", afirma.
Outro que também vai por esse caminho do significado nas relações é o físico irlandês Stephen Little, membro da equipe de medicina integrativa do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, e um dos responsáveis pela introdução do mindfulness no Brasil.
Para ele, o momento atual é bom para se fazer uma pausa e pensar no que significa ter um amigo de verdade. "Alguns pensadores do passado ajudam nessa definição, como o ensaísta norte-americano Ralph Waldo Emerson, que certa vez disse: 'um amigo é uma pessoa com a qual posso ser sincero'. Considero esse um aspecto essencial do potencial da amizade verdadeira", diz Little.
De acordo com o físico, provavelmente temos poucos amigos em quem realmente confiamos porque são eles que normalmente escutam e se importam conosco. "Conseguimos ser sinceros com os verdadeiros amigos porque confiamos neles. Esta é a base da relação", explica.
"A maneira mais fácil de ter um amigo é sendo um"
Será, então, que é possível ser feliz sozinho? Sem ter "um milhão de amigos"? "Acredito que estamos vivendo profundas mudanças na forma e nos meios com que nos relacionamos, e essas mudanças serão ainda maiores nos próximos anos. Precisamos, por exemplo, compreender que alguém pode viver sozinho e não ser infeliz", começa explicando a psicóloga Renata Marques Silva.
"Quando acreditamos que as pessoas precisam sempre formar casais para serem felizes, limitamos a experiência humana. Da mesma forma, muitos têm horror a qualquer experiência de estar só, sem compreender o quanto essa experiência bem aproveitada torna a qualidade de sua companhia melhor. O que precisamos fazer é compreender que não teremos boas relações sem dedicação, real atenção e sem presença". Renata Marques Silva, psicóloga da DaVita Serviços Médicos.
Stephen Little também concorda que a questão da amizade é uma via de mão dupla. "Se não consegue achar um bom amigo na lista de contatos, existe uma dica muito preciosa e antiga. Não é preciso esperar até que um tipo 'melhor de amigo' venha", defende ele.
"A maneira mais fácil de ter um amigo é sendo um. Os melhores amigos são pessoas que conseguem ficar sozinhas —e bem. São as que já aprenderam a curtir sua própria presença. Ou seja, apreciam momentos de solitude", afirma o especialista, que costuma ministrar um curso sobre "Como ter melhores conversas", na School of Life de São Paulo, justamente para ensinar a ter encontros mais significativos e melhorar os vínculos emocionais.
Para quem já fez as pazes consigo mesmo, é capaz de curtir momentos de solitude sem ficar triste e está em busca de aumentar sua rede de amigos, vale guardar na mente essa dica de ouro dada pelo expert em medicina integrativa: "Por natureza, nenhuma relação humana é fácil. Sempre existiu o desapontamento nas amizades e o que faz uma amizade se tornar significativa é como lidamos com ele. Às vezes, descobrimos que não vale a pena continuar com aquele amigo e pronto. Mas se você perceber potencial na relação, tem que ter uma atitude de garra e persistência", diz.
Ele não acredita que as relações estejam mais efêmeras, mas vê que as pessoas estão menos dispostas a investir seu tempo para construir e manter relacionamentos. "Por outro lado, levamos uma vida cada vez mais corrida, sem tempo de qualidade para nós mesmos, quem dirá ao outro".
A solidão é uma condição permanente de quem está só, não por escolha, normalmente carregada de emoções desagradáveis. Sustenta a angústia da ausência do outro, condiciona a própria felicidade ao outro. Já a solitude é uma condição passageira e voluntária de quem aprendeu a estar sozinho e se sentir bem na própria companhia.
Ficar sozinho e se sentir desconectado do mundo, da sociedade, pode ser muito prejudicial, pois perdemos meios de diálogo e expressão no mundo. Pode ser acompanhado da sensação de desamparo, desamor e inutilidade, trazendo comprometimentos sociais e psicológicos. Mas aprender a estar bem sozinho pode ser extremamente positivo quando voluntário. Na solitude, descobrimos que o espaço interno precisa ser tão rico ou mais quanto o externo.
A experiência pandêmica trouxe introspecção e silêncio para muitas pessoas, além de pedir por paciência —seja para esperar a situação se definir, seja para acompanhar a recuperação de quem ficou doente ou a chegada das vacinas. Todas essas situações totalmente fora do que se estava acostumado no cotidiano pedem uma reavaliação do que é, de fato, mais importante. E conviver bem consigo mesmo, sozinho, talvez seja um aprendizado que as próximas gerações precisarão desenvolver.
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