Como Mogli e Tarzan, conviver com animais pode influenciar quem somos?

Em "Livro da Selva", de Rudyard Kipling, é contada a história de um menino indiano criado por uma alcateia de lobos, um urso e uma pantera e que aprendeu com eles comportamentos e habilidades extraordinárias, como caçar, farejar e liderar animais pela selva. Essa aventura rendeu o clássico do cinema "Mogli: O Menino Lobo". Já na África, a lenda é a de Tarzan, outro garoto, parecido em muitos aspectos com Mogli, mas adotado por um bando de macacos.

Casos assim, de gente assumida como filhote por bichos e que cresce como eles, não só são possíveis como reais. Em 1978, Sujit Kumar, um garoto de 8 anos de Fiji, na Oceania, foi encontrado cacarejando e ciscando como um frango, após ser mantido em um galinheiro por anos. Mais recentemente, em 2013, na Rússia, também foi descoberto que uma menina chamada Madina vivia desde seu nascimento sozinha entre cachorros e sentia-se um deles.

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"Existem vários relatos sobre crianças que foram privadas de convívio social e passaram a viver com animais ou em isolamento social e foram consideradas selvagens. Casos que representam uma forma de se tentar entender o papel da sociedade e do convívio com outros da mesma espécie para o desenvolvimento das funções únicas do ser humano", afirma Karine Pontes Souza, mestre em psicologia cognitiva pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Só ocorre em situações extremas e com crianças

Geralmente, para que alguém se desenvolva com características animalescas acentuadas é preciso de situações dramáticas por trás. Pelo que já foi observado, envolvem crianças que se perdem em florestas ou que crescem em seus próprios lares, mas por serem vítimas de maus-tratos, negligências e abusos diversos, acabam encarceradas juntamente com animais, ou por não terem a quem recorrer, encontram neles o suporte necessário para sua sobrevivência.

"Os animais seriam a única referência. Quando não se sentem ameaçados, eles nos aceitam e até acolhem e validam quem somos, mesmo com todas as diferenças. No entanto, ao contrário do que ocorre com crianças, acredita-se que os adultos não sejam influenciados", explica Marli Cunha, psicóloga do HCSG (Hospital Casa de Saúde Guarujá). O motivo? O processo de identificação se inicia nos primórdios de vida e afeta o desenvolvimento psíquico e emocional.

Nesse sentido, por estarem desde cedo distanciados do meio social e em contato com animais, esses indivíduos também adquirem hábitos primitivos. Aprendem com seus "semelhantes" a disputar comida, território, atenção e até a se comunicarem. Kumar, o garoto que cresceu com galinhas, por exemplo, fazia barulhos estalando a língua. Enquanto Medina, a menina russa, roía ossos com os cães no chão, andava sempre de quatro e nua e rosnava para estranhos.

Quando o convívio é positivo

Deixar seu filho pequeno perto de um cachorro ou gato obviamente não o tornará menos civilizado. Mas isso não quer dizer que ele não possa assimilar informações dos pets com os quais convive em casa. Mesmo tendo como pais humanos zelosos e vivendo em sociedade, nós todos estamos sujeitos a esse tipo de influência, explicam os especialistas em comportamento humano, que também asseguram não ser motivo de preocupação.

"Da mesma forma que os animais domesticados têm seus comportamentos influenciados por nós, eles podem nos influenciar. Existe uma troca enorme de carinho, confiança e amor. Isso impacta a maneira como se percebe e lida com o mundo, as pessoas e as responsabilidades. Adquirimos um senso maior de cuidados, por termos vidas dependentes de nós", lista Yuri Busin, psicólogo e diretor do Casme (Centro de Atenção à Saúde Mental), em São Paulo.

Crianças que crescem ou passam bastante tempo em convivência com mascotes igualmente aprendem com eles o valor de uma amizade sincera e leal, sempre presente, além de como deixar desentendimentos de lado, cooperar com os outros e identificar perigos que nem sempre são facilmente identificáveis. Os cães ainda são capazes de arriscar suas próprias vidas por nós e anseiam por viver sua breve existência de forma intensa, mesmo em dificuldades.

Equilíbrio é a chave

Uma coisa é certa, os extremos é que não são bons. Se de um lado é intolerável permitir que crianças sejam esquecidas, ignoradas e largadas entre bichos, a ponto de se reconhecerem como da espécie deles e não humanos, do outro é, no mínimo, desvantajoso do ponto de vista psicoemocional detestar animais e não querer sua presença. Não faz mal, mas perde-se uma oportunidade valiosa de aprender sobre outras formas de amor e tudo o que isso representa.

Liliana Seger, doutora em psicologia pelo IP-USP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), complementa que há ainda pessoas cuja dificuldade em se relacionar com outras é tamanha que preferem se isolar com os bichos. "Não é pelo motivo de Mogli [e Tarzan], mas dá para fazer um paralelo com sua dificuldade de socialização. Isso é muito observado em quem sofre de Transtorno Explosivo Intermitente (TEI). Se dão muito melhor com os animais".

Nessas circunstâncias, cabe tratamento e os resultados podem ser positivos. Agora, no que compete a quem se identifica e age como animal desde sempre, é um pouco mais complicado. Muitas crianças selvagens são atestadas saudáveis mentalmente, por isso tentar ressocializá-las exige muito cuidado. Pode ser tão duro quanto o período em que precisaram se adaptar sem os humanos. Algumas até se saem bem, mas outras não, se deprimem e morrem cedo.