Pais de menino com hemofilia grave: 'Não criamos nosso filho numa bolha'
João Lucas, 9, foi diagnosticado com hemofilia A grave após uma coleta de sangue pela artéria ter deixado seu braço todo inchado. Com a recomendação de evitar uma exposição do filho a brincadeiras e atividades que aumentassem o risco de ele se machucar e sofrer um sangramento ou hematoma, os pais dele, Lucas Schirmer, 36, e Ana Carolina, 35, decidiram não criar o menino numa bolha, e o encorajam a ter autonomia. "A gente tenta achar um meio-termo para que ele possa ser criança e viver a infância", diz o gerente comercial rondoniense radicado em Curitiba e presidente da Associação Paranaense dos Hemofílicos, que é pai de mais duas meninas, Fernanda e Daniela, que não têm a doença.
"João Lucas tinha um ano e um mês de idade quando o levamos de manhã ao hospital para fazer alguns exames, entre eles o de sangue, para descobrir por que ele estava mancando. À tarde, o pessoal da escola ligou dizendo que ele estava muito quieto.
Ao buscá-lo, minha esposa viu que o braço dele estava inchado. Ela o levou à pediatra, que suspeitou tratar-se de uma crise hemorrágica. João foi para a UTI, passou por alguns procedimentos, ficou internado dez dias e foi diagnosticado com hemofilia A grave, uma doença sem cura.
A médica explicou que ele não tem uma proteína do sangue que ativa a cadeia de coagulação. Na prática, isso significa que se ele se cortasse, por exemplo, iria sangrar muito mais do que uma pessoa sem hemofilia. Se ele sofresse uma batida, isso já poderia causar um grande hematoma. Ele teria muito mais facilidade para se machucar, demoraria mais tempo para se recuperar e não poderia praticar esportes de alto impacto, como lutas e futebol, por conta do risco de traumas e lesões.
Como a hemofilia do João é grave, ele iniciou o tratamento profilático, que atua na reposição do fator de coagulação deficiente —no caso dele, o fator VIII— por meio de injeção na veia. Ele ia ao hemocentro três vezes por semana para receber a medicação.
Na escola, conversamos com a diretora e com alguns professores, incluindo o de educação física, para explicar a condição e dar a orientação de que se ele se machucasse era para eles nos ligarem. Nunca pedimos nenhum tratamento especial ao nosso filho e nem conversamos com os amiguinhos para falar "oficialmente" da doença, eles foram descobrindo naturalmente conforme a convivência deles, e ao notarem os machucados do João.
Não iria chegar na escola ou em qualquer lugar e falar: 'cuidado com meu filho, não o machuquem, ele é frágil, coitadinho'. Existia a preocupação de como as outras crianças iriam tratá-lo, mas a maior preocupação era com o psicológico dele e de não colocá-lo no lugar de vitimismo.
De forma geral, a comunidade médica segue uma linha mais conservadora de não expor a criança hemofílica a nenhum risco. Eu e minha esposa nunca criamos o João numa bolha, sempre procuramos achar um meio-termo entre a segurança dele, mas também deixá-lo ser criança e viver a infância.
Se a gente fosse numa festinha, eu ou a mãe dele o acompanhávamos na piscina de bolinha, na cama elástica ou em outros brinquedos, quando estava mais vazio, e o deixávamos brincar um pouquinho, nem que fosse cinco minutos.
A gente preferia lidar com um roxo que aparecesse no corpo dele causado por uma batida que ele sofreu enquanto se divertia do que restringir tudo e causar nele uma sequela psicológica, em que ele achasse que era incapaz e inferior por causa da doença. Não podíamos falar que ele era normal e tratá-lo diferente.
O período de férias
Uma outra situação que tivemos que lidar foram as férias em família. Fomos orientados a não viajar pelo risco de ele se machucar e também por conta do deslocamento —ele ia ao hemocentro três vezes por semana. A gente ia para a praia em um dia e voltava no outro a tempo de ele receber o fator na veia.
Nós sempre jogamos limpo com o João explicando que ele poderia fazer as coisas, mas com cuidado, e que às vezes seriam necessárias algumas adaptações. Isso vem desde cedo. Quando ele tinha dois anos, por exemplo, nós o mandávamos para a escolinha com joelheira e cotoveleira para minimizar o impacto das quedas.
Quando ele tinha três anos, a escola nos apresentou duas opções de atividades complementares, judô ou balé. A médica não liberou a luta e nós o colocamos no balé, ele era o único menino. Ele praticou a dança por um ano, foi o quebra-nozes no meio de várias meninas durante uma apresentação. Chorei de emoção.
O João criou uma maturidade em que ele mesmo observa uma brincadeira ou atividade e avalia se deve ou não participar. Na aula de educação física, por exemplo, às vezes, ele é o que bate a corda em vez de pular. No futebol, ele é o juiz em vez do jogador. No futsal —a médica o liberou para a prática— ele não pode ser goleiro, não pode ficar na barreira e nem cabecear.
Ao longo desses anos, enfrentamos algumas dificuldades com o tratamento do João, a pior delas foi na época em que ele desenvolveu um inibidor que fez com que ele não respondesse mais à terapia de reposição com o fator VIII.
A médica fez algumas adaptações, que exigiu a necessidade de o levarmos ao hemocentro todos os dias. Às vezes ele tomava 5, 6, 7 furadas por dia. Ele ficava traumatizado, chorava, fazia um escândalo e tinha que ser segurado por várias pessoas para receber a medicação. Aos seis anos, ele fez terapia para vencer o medo da agulha.
Após receber alta da psicóloga, nós avançamos em uma importante fase do tratamento que foi passar por um treinamento, onde eu e minha esposa aprendemos todos os passos para aplicar a fator nele. Com isso, aplicávamos em casa e não precisávamos mais ir ao hemocentro.
Isso nos deu muita mais liberdade, inclusive para fazer viagens mais longas e poder aplicar mais rapidamente quando ele se machucasse e fosse necessário.
O que mais incomoda o João, que hoje tem nove anos, é a repetição dos machucados e a demora da recuperação. Ele se machuca pelo menos uma vez por mês com coisas simples, como esbarrar na quina da mesa e tomar uma bolada leve no pé ou na mão.
Várias vezes ele já precisou ficar internado e usar cadeira de rodas para se locomover, inclusive para ir à escola. Nas situações mais graves, ele precisou ficar de repouso.
Em novembro de 2021, ele iniciou um novo tratamento com uma medicação subcutânea, que ainda é restrito a um grupo de pacientes. Ele recebe a medicação uma vez por semana. Estamos segurando um pouco a expectativa, mas já notamos uma melhora.
Teve um dia em que ele bateu a mão brincando, inchou e ele reclamou de dor. Fomos orientados a passar gelo, repouso e anti-inflamatório. Dois dias depois ele já estava bem. Muito provável que na mesma situação, sem essa nova medicação subcutânea, o inchaço aumentaria, ele teria que tomar uma dose maior de fator, ou até precisaria ir ao hospital e ficar internado.
Ter um filho com hemofilia é difícil, a doença impõe algumas restrições, mas ela não o define como pessoa. É uma oportunidade ser pai do João, ele é um menino inteligente e esperto, eu mais aprendo com ele do que o ensino."
Quais os tratamentos para hemofilia?
Os principais tratamentos para os pacientes no Brasil consistem na reposição endovenosa do fator deficiente.
Para os pacientes com hemofilia A, fazemos a reposição do fator VIII de coagulação, que pode ser derivado do plasma (proveniente de doações de sangue) ou recombinante (produzido em laboratório). Para os pacientes com hemofilia B, fazemos a reposição do fator IX de coagulação, derivado do plasma (proveniente de doações de sangue).
Recentemente, foi incorporado pelo Ministério da Saúde um novo tratamento para hemofilia A, cuja aplicação é de forma subcutânea, o emicizumabe. Porém, ele está disponível apenas para um grupo restrito de pacientes, que são aqueles que desenvolveram inibidor (anticorpo que promove resistência à medicação) e que não obtiveram sucesso com a imunotolerância —processo que visa retirar esses anticorpos e pode durar até três anos.
Se o paciente preencher os requisitos, ele pode ter acesso à medicação conforme solicitação do médico hematologista que o acompanha. A terapia subcutânea está disponível em todo hemocentro que trate pessoas com hemofilia.
Como funciona o tratamento por administração intravenosa?
Quando nos machucamos e começamos a sangrar, existem fatores que ficam no nosso sangue e entram em ação para estancar o sangramento. Esse processo é chamado de coagulação. As pessoas com hemofilia não possuem um desses fatores ou possuem em quantidade menor que o normal, e por isso sangram mais. O tratamento consiste em repor esses fatores faltantes para evitar ou tratar sangramentos.
Para prevenir sangramentos e para que a pessoa possa ter uma vida "normal" —fazendo atividades físicas sem se machucar, como jogar bola ou academia—, ela tem que aplicar o fator endovenoso cerca de 3 vezes por semana.
Dessa forma, o paciente aprende a aplicar o fator em si mesmo (no caso dos adolescentes e adultos) ou a família aprende a "pegar a veia" da criança e aplicar o fator em casa. Com o uso correto, o risco de sangramento diminui bastante.
O tratamento profilático é indicado para pacientes com hemofilia grave, aqueles que têm menos do que 1% do fator, que são os indivíduos com maior risco de sangramento. Para os pacientes com hemofilia moderada ou leve, geralmente fazemos o fator apenas para tratar possíveis sangramentos.
Como funciona a terapia subcutânea?
O novo tratamento que foi incorporado pelo Ministério da Saúde, o emicizumabe, é um anticorpo monoclonal que faz o papel do fator VIII no processo da coagulação. Ele é indicado somente para a profilaxia de sangramentos, e não para o tratamento das hemorragias depois de já terem ocorrido.
A medicação é de aplicação subcutânea 1 vez por semana, a cada 2 semanas ou a cada 4 semanas.
A principal vantagem é a alta eficácia na redução dos sangramentos de acordo com alguns estudos, provavelmente pelo maior tempo de duração do fator em relação aos outros e também pela facilidade de aplicação e maior adesão ao tratamento. Além disso, a via de administração subcutânea facilita muito o uso domiciliar do medicamento.
Fonte: Izabella Campos Oliveira Hegg, oncologista e hematologista pediátrica da Santa Casa de São Paulo e do Grupo Americas.
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