Atraso na linguagem: devido à pandemia, crianças estão demorando a falar
Pais têm relatado que os filhos estão levando mais tempo para começarem a falar, e profissionais da saúde afirmam que as reclamações referentes ao atraso estão mais frequentes. A principal causa apontada pelos especialistas é a pandemia, que obrigou o distanciamento social, a suspensão das aulas e, consequentemente, a diminuição das atividades e recreações infantis, afetando o desenvolvimento da linguagem e da fala.
A falta de estimulação adequada em relação à linguagem oral tem sido percebida em menores de três anos, principalmente na faixa etária de 0 a 2 anos, que são aquelas nascidas desde o início da pandemia. "Elas foram privadas de diversas situações de convívio social em ambientes escolares ou familiares devido às medidas de distanciamento e isolamento social", afirma Scheila Farias de Paiva, fonoaudióloga e professora do curso de fonoaudiologia da UFS (Universidade Federal de Sergipe).
Durante o período de isolamento, elas foram cerceadas de diversos estímulos que ocorriam no dia a dia, desde um passeio, uma ida ao mercado e de brincadeiras em parquinhos, além da falta de convívio com outras da mesma idade, nas escolas e creches. "O aprendizado infantil e desenvolvimento da linguagem necessitam de observação, que ocorre nos momentos de convivência com os amigos, em como os pais se relacionam com os adultos e de exercícios que os pais fazem nomeando objetos em uma ida ao mercado ou em um passeio. Essas atividades ampliam o vocabulário e favorecem a elaboração de histórias", diz Maria Fernanda Bagarollo, fonoaudióloga e professora do curso de fonoaudiologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
É por meio das brincadeiras que se expressam e se desenvolvem. Bagarollo explica que o entretenimento com o adulto é diferente. O adulto impõe as regras e os jogos partem de sua concepção. "Quando a criança brinca com outra da mesma idade é o momento em que linguagem aparece nos jogos de faz de conta. É uma negociação constante e há sempre a sinalização se está gostando, se quer ou não continuar o passatempo."
Wellington da Cruz Souza, psicopedagogo e fonoaudiólogo, relata que na escola, os alunos tendem a repetir os colegas para obter atenção ou conseguir algo, por exemplo. Na pandemia, houve também a redução dessas oportunidades de entrosamento.
Quando é normal começar a falar?
A comunicação ocorre desde o nascimento e o choro é uma manifestação desta habilidade. A linguagem começa a se desenvolver por meio da observação, repetições, expressões faciais, gesticulação, sons e pela interação. "Seu aspecto é mais amplo —inclui emoções, sensações, sentimentos e interpretações—, e a fala é a sua manifestação, ou seja, a materialização dessa evolução", explica Bagarollo. Ambas progridem à medida que há convivência com os próprios pais, irmãos, avós, amigos e professores.
Por volta dos 8 ou 9 meses, a criança já compreende nomes, gestos, a como dar tchau para se despedir, e a bater palmas. Em torno de 1 ano, intensifica-se a comunicação e compreensão gestual e inicia-se a expressão oral por meio de palavras isoladas. "Até 1 ano e meio, seu vocabulário se expande e aos dois anos, aproximadamente, já estrutura frases", diz Bagarollo.
Quando é preciso se preocupar
"Temos nos questionado sobre a dimensão do impacto causado pela pandemia, como crianças que apresentam outras alterações de linguagens mais graves, assim como as maiores que se encontram em fase de alfabetização", pontua Paiva.
Deve-se atentar aos sinais que podem indicar problemas de saúde que causam o retardo na linguagem e na fala, como alterações auditivas, motoras e neurológicas. "A fala depende do desenvolvimento saudável da audição e das estruturas fonoarticulatórias, responsáveis pela respiração, sucção, deglutição e mastigação. Alterações no frênulo lingual levam a dificuldades na sucção e, também, na reprodução de alguns fonemas", diz Souza.
Crianças que não ouvem também apresentam dificuldades na diferenciação e compreensão de sons e, consequentemente, não reproduzem o que estão ouvindo ou não se comunicam de maneira efetiva. É muito importante entender em que fase a criança se encontra para saber o que é esperado.
Outros sinais podem ser a falta de expressão de sons, como "papá e mamã", se tiver em torno de 1 ano, preferência em apontar para conseguir as coisas, em brincar sozinha, ausência de imitação, repetição e de contato visual. Contudo, é preciso buscar a avaliação de profissionais que farão o diagnóstico e recomendações.
Excesso de telas tem seu papel
O uso exagerado dos dispositivos eletrônicos —celular, tablet e TV— é apontado pelos especialistas como um agravante. O excesso de uso da tecnologia diante de toda mudança na dinâmica familiar tem colaborado para o atraso na fala.
"Muitas mães, pais ou cuidadores acabaram por se tornar multitarefas, com mais de uma criança ou situações de atividade remotas, e recorreram ao uso de celulares e tablets para entretenimento delas. Por mais que os desenhos e cores sejam interessantes, a ausência de interação linguística qualificada compromete o desenvolvimento", elucida Paiva.
A SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) preconiza a não exposição de menores de dois anos às telas, mesmo que passivamente. Entre dois a cinco anos, o tempo de uso deve ser, no máximo, uma hora por dia, sempre com supervisão e, para todas as idades, nada de telas durante as refeições e desconectar uma a duas horas antes de dormir.
Como estimular a fala
"É importante que os pais compreendam que a linguagem é uma função social e, em tempos de pandemia, a família é o único modelo. Sem interação linguística e oral não haverá progresso adequado. Diante da rotina corrida e pouco tempo no ambiente familiar, atitudes como entregar objetos sem a solicitação oral impossibilita o diálogo, priva a troca linguística e sua evolução", alerta Paiva.
A boa notícia é que é possível incentivar a linguagem e a fala nas atividades do dia a dia, como às refeições, no banho e até na hora de dormir, antes mesmo de apresentar qualquer dificuldade. "Não é a quantidade, mas a qualidade do tempo. É preciso dedicar-se inteiramente; priorizar um horário para elas com atenção, presença e promovendo atividades, explorando os brinquedos e a criatividade", esclarece Denise Lopes Madureira, fonoaudióloga e coordenadora do setor de fonoaudiologia do Sabará Hospital Infantil.
Os especialistas sugerem:
- Organizar atividades recreativas com crianças da mesma faixa etária, incentivando o relacionamento social;
- Passeios e atividades ao ar livre como idas a parques;
- Deixar lúdicas as tarefas da casa, por exemplo permitir que a criança acompanhe o preparo das refeições, nomear os ingredientes do preparo, questionando cores, formas e tamanhos;
- Perguntar nas refeições se ela quer algum determinando alimento ou água e repetir a palavra para a assimilação;
- Brincar de empilhar e encaixar objetos, jogar bola e boliche são momentos que permitem a troca entre os participantes. Para os maiores, jogos de tabuleiro são indicados;
- Motivar os sons nas brincadeiras com bonecas ou carrinhos;
- Durante a diversão com os bebês, pode-se estimular o contato visual, chamar a atenção para a boca para ensinar um modelo de como pronunciar determinadas palavras; reproduzir sons de animais ou meios de transportes e dar sempre significado ao que foi dito, por exemplo, relacionando "papá" a comer ou ao papai, de acordo com o contexto;
- As cantigas são excelentes formas de interação e motivação;
- Esconde-esconde é uma das atividades preferidas desde os primeiros meses e ajudam o avanço;
- Na hora do banho, citar as partes do corpo e estimular cantigas;
- Contar histórias e a leitura de livros não devem se restringir à hora de dormir; podem ser feitas em outros momentos, explorando vozes e a criatividade, mostrando figuras.
Fontes: Denise Lopes Madureira, fonoaudióloga e coordenadora dos setores de fonoaudiologia e de cuidados paliativos do Sabará Hospital Infantil; Maria Fernanda Bagarollo, fonoaudióloga, docente do DDHR (Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação) coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação da FCM (Faculdade de Ciências Médicas) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); Scheila Farias de Paiva, fonoaudióloga, audiologista e reabilitadora de audição e da linguagem infantil e professora do curso de fonoaudiologia da UFS (Universidade Federal de Sergipe); Wellington da Cruz Souza, psicopedagogo e fonoaudiólogo com especialização em neuroaprendizagem, cognição e psicomotricidade.
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