Por sete anos ela achou que tinha epilepsia, mas era enxaqueca
"Já estive aqui, já passei por isso". Desde criança, Beatriz Ferraz, 29, tinha déjà-vus, a sensação de ter vivenciado no passado uma cena ou experiência no presente. Na adolescência, a mãe de Beatriz chegou a pensar que a filha poderia ser médium e a levou a um centro espírita. Aos 21 anos, a gerente de inteligência de dados, de São Paulo, recebeu o diagnóstico errado de epilepsia, conviveu com o medo de ter uma convulsão e, após sete anos, descobriu ter enxaqueca sem dor de cabeça. Conheça a história dela.
"Minha mãe conta que as manifestações de déjà-vu começaram na infância. Eu falava algo do tipo: 'Lembro de já ter vindo aqui'. Ela dizia que nunca tinha estado naquele lugar antes e deixava pra lá, achava que era coisa de criança.
Na adolescência, os déjà-vus passaram a ser mais fortes e vinham acompanhados de um frio na barriga. Era um lapso muito rápido, de poucos segundos. A sensação de já ter vivido uma cena ou experiência ocorria em diversas situações, às vezes era relacionado a um lugar, a uma pessoa, uma conversa, uma ação.
Já tive déjà-vus lavando louça, passando na catraca do ônibus, trabalhando, falando ao telefone com uma amiga.
Tinha déjà-vus a cada 3 e 6 meses, de duas a quatro vezes por dia. Quando acontecia, geralmente tinha tido uma noite ruim de sono, acordava com a cabeça pesada. No dia seguinte ao déjà-vu, sofria com um leve esquecimento, não lembrava de algumas coisas que tinham acontecido naquele dia.
Durante anos, senti muito medo em relação a isso, era o medo do desconhecido. Pensava: 'Estou ficando doida, estou com algum problema grave, tem alguma coisa errada'. Era como se não tivesse o controle da situação.
No início, comentava com meus pais, eles achavam estranho, mas depois de um tempo, minha mãe, que é espírita, achou que os déjà-vus eram manifestações de que eu poderia ser médium. Ela me levou ao centro espírita que frequentava, uma moça reforçou a suspeita da minha mãe, mas disse que a mediunidade só iria se manifestar se eu quisesse, se eu desse permissão para isso.
Nunca fui uma pessoa religiosa, sou ateia. Não queria, não me identificava e não acreditava que tivesse relação com o Espiritismo, então descartei essa possibilidade.
Aos 18 anos, procurei ajuda médica de um clínico geral e de um gastroenterologista, mas eles não descobriram o que tinha. Pesquisei na internet sobre déjà-vu e achei que poderia ser algo neurológico. Passei em consulta com um neurologista, fiz vários exames, ele disse que todos estavam normais.
Como as manifestações eram espaçadas, ele disse para voltar quando tivesse um novo episódio. Não gostei da resposta dele, não era normal ter aquilo uma vida inteira.
Três anos depois, aos 21, procurei uma outra neuro, refiz os exames, todos deram ok. A médica me diagnosticou com epilepsia do lobo temporal mesmo os exames não indicando um quadro epiléptico, foi um diagnóstico clínico, pelos sintomas —a epilepsia pode ter como sintomatologia o déjà-vu.
Segundo ela, só ia precisar tomar medicação se as manifestações fossem mais recorrentes ou se tivesse convulsão.
A possibilidade de ter uma convulsão a qualquer momento me gerou uma ansiedade enorme, passei a ter crises de ansiedade e um pouco de fobia de alguns lugares. Antes do diagnóstico, era muito independente, fazia muitas coisas sozinha, principalmente viajar, mas diminuí bastante com medo de passar mal e não ter ninguém para me ajudar. Também passei a ficar extremamente vigilante com sintomas, imaginando que talvez algum deles pudesse preceder uma crise convulsiva.
Fui levando minha vida, fiquei anos sem ir ao neurologista, continuava com os déjà-vus e, apesar do medo, nunca tive convulsão. Em 2021, troquei de convênio médico, decidi fazer um check-up geral e passar em uma outra neurologista.
Contei minha história para a médica, ela me examinou e desconfiou que o diagnóstico estivesse errado. Fiz novos exames, entre eles, um em que fui monitorada por 24 horas com vídeo eletroencefalograma. Após o resultado, tendo apresentado os mesmos sintomas durante o exame e sem registro de crise, ela descartou a epilepsia e disse que, na verdade, eu tenho enxaqueca com aura, muitas vezes manifestada sem dor de cabeça —embora já tenho sentido fortes dores de cabeça em alguns momentos da vida.
Ela explicou que pacientes com o tipo de enxaqueca que tenho podem ter sensações semelhantes ao que se denomina déjà-vu e serem na realidade aura da enxaqueca.
Ao receber o diagnóstico correto, a sensação foi de felicidade e alívio, era como se tivesse tirado um pesado nas costas. Durante sete anos acreditei que tinha epilepsia, uma doença bem mais grave. Fiquei com aquela sensação de: 'Por que aceitei o diagnóstico da outra médica, por que não procurei uma outra opinião mais rápido, poderia ter antecipado esse alívio'.
Acreditei na neurologista que me deu o diagnóstico certo, ela foi muito atenciosa e cuidadosa, mas confesso que achei curioso o fato de existir um tipo de enxaqueca sem dor de cabeça e fui pesquisar na internet.
Quando penso em enxaqueca, lembro das crises que minha mãe tinha e precisava ficar deitada no escuro e em silêncio.
A médica me apresentou duas opções de tratamento: um mais longo e preventivo, onde precisaria tomar medicação por meses. E outro em que tomaria só durante a crise. Como os déjà-vus aconteciam num intervalo de 3 a 6 meses e chegavam a acontecer até quatro vezes no dia, optei pelo segundo.
A prova de fogo aconteceu num dia em que tive uma crise, tomei o remédio e 30 minutos depois me senti melhor e não tive nenhuma outra manifestação durante o dia.
Desde então, tenho tido uma vida bem mais leve, sem preocupação e sem medo em relação à minha saúde. Farei um acompanhamento a cada seis meses para me certificar de que está tudo bem.
Aprendi uma lição que repasso a todos ao meu redor: diagnósticos podem ser complexos, se você não acredita que tem a resposta ainda, procure outras orientações. Mesmo que demore, algum médico irá ajudá-lo a se sentir mais seguro e a viver bem com a sua condição, seja ela qual for."
O que é déjà-vu?
É uma expressão francesa que significa já visto, se refere à percepção do indivíduo de já ter vivenciado determinada experiência externa. É a construção de uma falsa memória. Acredita-se que sejam manifestações oriundas de um falso reconhecimento de algo que foi visto, porém não memorizado por completo em decorrência de erro no processo dos circuitos da memória de curto e longo prazo. São descritos três tipos de déjà-vu: relacionado a uma situação, a uma sensação ou a um lugar.
Essa sensação pode estar presente em situações neurológicas, como crise epiléptica e enxaqueca. Sensações semelhantes às descritas no déjà-vu também podem ser vistas em doenças psiquiátricas.
Quais os principais tipos de enxaqueca?
Na linguagem médica, chamamos enxaqueca de migrânea. Existe a migrânea sem aura e a migrânea com aura, a mais comum. Aura corresponde a sintomas clínicos, como alteração visual (pontos brilhantes, cintilações, imagens em ziguezague), alteração da linguagem, sensações olfativas, gástricas e perceptivas, como as sensações semelhantes às do déjà-vu. Costumam anteceder a dor de cabeça propriamente dita em uma hora.
A enxaqueca é um conjunto de sintomas, dentre eles a dor de cabeça. Podemos ter a aura sem a dor de cabeça. A migrânea pode se apresentar em 4 fases: a primeira delas, chamada de premonitória, caracteriza-se por fadiga, bocejo, dificuldade de concentração e avidez por doces. Esses sintomas podem ocorrer em média 72 horas antes da dor de cabeça.
A segunda fase é a aura, quando trata-se de enxaqueca com aura. A terceira fase é a cefaleia, a dor de cabeça propriamente dita, que pode durar de 4 a 72 horas, geralmente em pontada e unilateral. Pode vir acompanhada de náusea e vômito, e o paciente geralmente sente muito incômodo com luz, sons e cheiros.
Na quarta fase, o paciente não tem mais a dor de cabeça, mas pode sentir dor muscular, cansaço e muitas vezes sensibilidade alterada no couro cabeludo.
Como diferenciar os déjà-vus em um quadro de epilepsia e na enxaqueca?
As características não são exatas e bem delimitadas, por isso, é necessário fazer uma anamnese bem feita, ouvir atentamente a história do paciente, antecedentes e exame físico. A aura tem a característica bem marcante de preceder em 60 minutos a dor de cabeça, e melhorar progressivamente até que a dor se instale.
Qual o perigo de confundir o diagnóstico de epilepsia com enxaqueca, principalmente se for indicado que o paciente faça uso de medicação?
O risco está no uso incorreto da medicação, se, por exemplo, tratarmos um paciente como epiléptico e ele não for. Isso terá uma repercussão importante no dia a dia do paciente. Deixar de tratar a enxaqueca, que é uma doença, também impactará na qualidade de vida da pessoa.
Fonte: Polyana Piza, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein (SP).
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