Com 750 gramas, prematura é o menor bebê do Brasil a fazer cateterismo
A temperatura na sala de hemodinâmica não passava de 20ºC, mas o médico Marcelo Ribeiro estava suando. Cardiologista intervencionista em cardiopatias congênitas da Rede D'Or São Luiz em São Paulo, o profissional, que há dez anos trata problemas no coração de bebês e crianças, estava realizando um cateterismo em um prematuro. O desafio, porém, era inédito: tratava-se de um bebê com pouco mais de 750 gramas —o que fazia dele o menor recém-nascido a passar por tal procedimento no Brasil.
A paciente minúscula se chama Rebeca. Nascida 20 dias antes daquele 1º de outubro de 2021, a menina viera à luz com 27 semanas de vida, muito menos do que a média de 40. Era, portanto, uma prematura extrema, como são chamados os bebês que nascem antes da 28ª semana de gestação ou sétimo mês.
Do lado de fora da sala, a ansiedade se misturava à esperança entre os pais da pequena. O casal, assim como a equipe médica, esperava que o procedimento cardíaco fosse uma luz para a criança.
Desde o seu nascimento, em 10 de setembro de 2021, os boletins médicos sobre a primogênita eram cheios de altos e baixos —com mais baixos do que altos. "No dia em que ela nasceu e foi para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva) neonatal, os médicos já alertaram que as próximas semanas seriam como uma montanha-russa de emoções. E foram mesmo", recordam a psicóloga Larissa, 26, e o executivo de vendas Klemilson Abreu, 32.
Poucos dias após o nascimento prematuro de Rebeca —que ocorreu devido a um quadro de pré-eclâmpsia (aumento da pressão arterial) grave em sua mãe—, a recém-nascida foi diagnosticada com um problema congênito conhecido como PCA (Persistência do Canal Arterial). A condição é exatamente o que seu nome sugere: a presença de um canal que, quando deveria estar fechado, permanece aberto.
Enquanto o bebê está na barriga da mãe, o canal arterial é como uma ponte que conecta a aorta (a maior artéria do corpo humano) à artéria pulmonar, responsável por levar sangue ao pulmão. Esse canal, porém, deve se fechar espontaneamente ao longo das primeiras 48 horas após o nascimento, com a expansão dos pulmões.
No entanto, não é o que acontece entre os bebês com PCA, como Rebeca. O resultado é que os pulmões continuam recebendo sangue, podendo ficar sobrecarregados, enquanto os outros órgãos recebem um fluxo sanguíneo reduzido.
Com incidência maior entre bebês prematuros, a condição responde por cerca de 10% das cardiopatias congênitas, segundo a médica Tathiane Davoglio, cardiopediatra e coordenadora do serviço de cardiopatias congênitas do Hospital e Maternidade São Luiz Anália Franco, da Rede D'Or São Luiz.
"O canal arterial é essencial para a vida intrauterina, mas se ficar aberto após o nascimento é muito prejudicial para prematuros, porque vai roubando o fluxo da aorta, do intestino, do rim e mandando para dentro dos pulmões. E isso gera consequências graves, como hemorragia pulmonar, alterações cardiorrespiratórias e insuficiência renal, como aconteceu com a Rebeca", explica Davoglio, que também acompanhou a recém-nascida.
Quando o canal arterial não se fecha naturalmente, o recém-nascido pode receber medicamentos para induzir esse fechamento, recurso que foi adotado no caso da primogênita de Larissa e Klemilson. Mas a bebê não reagiu de forma consistente ao tratamento e seu caso continuou a se agravar.
Foi aí que a equipe médica decidiu tirar do papel um plano B: o cateterismo cardíaco —procedimento minimamente invasivo que levou a pequena Rebeca à sala de hemodinâmica naquela tarde de sexta-feira.
Esperança do tamanho de uma ervilha
O suor do cardiologista Marcelo Ribeiro não era à toa. Embora outras crianças maiores e alguns bebês com menos de 1 kg já tivessem passado por um cateterismo cardíaco no Brasil, nenhum deles era tão pequeno quanto Rebeca.
E esse não era o único desafio pela frente. "Era um canal muito grande num bebê muito pequeno, o que também deixou a gente apreensivo. Mas precisávamos fazer alguma coisa, porque ela provavelmente não iria resistir por muito mais tempo", avalia o cardiologista intervencionista, que liderou o procedimento inédito ao lado de Carlos Pedra, diretor médico no HCor (Hospital do Coração) e no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, ambos em São Paulo, e líder da cardiologia intervencionista no país.
Segundo Ribeiro, o canal arterial de Rebeca chegou a medir 4 milímetros de espessura, valor considerado alto para um bebê de seu tamanho.
Rodeada por uma equipe de oito pessoas, entre cardiologistas, enfermeiros e anestesiologistas, a sala de hemodinâmica do Hospital e Maternidade São Luiz Anália Franco se tornou palco para o cateterismo com o menor recém-nascido do Brasil até o momento, diz o especialista.
Com auxílio das imagens do ecocardiograma —um ultrassom específico do coração—, os médicos introduziram um cateter pela virilha da recém-nascida até chegar ao coração. Foram várias tentativas até que conseguissem alcançar com uma agulha a veia da região, tão fina quanto um fio de cabelo.
Passado esse desafio, no entanto, uma prótese "menor que uma ervilha", chamada de Amplatzer Piccolo, foi inserida no local sem grandes dificuldades. Mas o dispositivo médico, desenvolvido para bebês a partir de 700 gramas, só foi "solto" ali dentro quando as imagens do ecocardiograma comprovaram que ele não interferiria no funcionamento do sistema circulatório da bebê. E o mais importante: que havia fechado o canal.
"O grande benefício desse procedimento feito por cateterismo é que a prótese fica presa no catéter até eu ter certeza absoluta que ela está no lugar certo e que ali ela não incomoda, não interfere em nenhuma outra estrutura da bebê", explica Ribeiro. O médico também ressalta que a técnica é menos invasiva que a cirurgia a céu aberto, cujo pós-operatório pode causar complicações graves em prematuros.
Não vai sair tão já da mente dos profissionais de saúde a cena da equipe, após quase três horas de cirurgia, comemorando o sucesso da intervenção. A alegria rapidamente se estendeu até as médicas neonatologistas que aguardavam na sala abaixo, aos profissionais que já estavam a postos em outro recinto para uma possível cirurgia —caso alguma coisa desse errado— e aos pais da criança.
"Quando você é 'mãe e pai de UTI neonatal', você não pode criar muita expectativa, então a nossa dificuldade sempre era qual é o limite de você ter esperança de que o melhor vai acontecer e também ser muito pé no chão, porque você não pode esperar demais, já que a notícia ruim pode chegar. Mas nós estávamos muito esperançosos, e receber a notícia foi como tirar 10 toneladas das costas. Eu consegui respirar", lembra Larissa.
Próximos passos
A revisão da prótese será feita nos primeiros meses e exames de ecocardiograma nos próximos dois anos. Segundo os médicos, o procedimento cardíaco foi crucial não só para salvar a vida da criança, como acelerar sua saída do hospital.
"Eu brinco que a prótese entrou e os problemas saíram, porque ela realmente começou a melhorar todo o restante. A gente conseguiu tirar as drogas para a diálise, por exemplo. Para mim, a Rebeca é guerreiríssima, ela foi vencendo um obstáculo de cada vez", diz Alessandra Bonizzoni Serra, médica neonatologista da UTI neonatal do Hospital São Luiz Anália Franco.
A jornada de Rebeca na UTI, no entanto, estava apenas na metade. Por conta das complicações da extrema prematuridade, a bebê só recebeu alta no último dia 27 de janeiro.
A lista de especialistas que ela terá de passar, como qualquer prematuro extremo, é longa —de nefrologista à fisioterapeuta. Poder estar com a filha nos braços após mais de quatro meses de internação, porém, é o que dá força aos pais.
"Sentar no sofá e colocar ela no colo, amamentar e ver todo o processo de crescimento dela de perto tem sido muito especial. Ela é um milagre de Deus", diz Larissa. No hospital, Klemilson lembra de, certa vez, ter flagrado um sorriso da criança. "E eu só consegui agradecer. Agora, ver esse sorrisinho dela o tempo todo é a minha esperança."
Assim como Rebeca, Ribeiro calcula que outros cerca de 20 bebês já passaram por esse procedimento no Brasil, aprovado recentemente no país e mais amplamente difundido nos Estados Unidos. O cardiologista acredita que a intervenção com a menor bebê foi "um grande passo no tratamento de prematuros" em território nacional.
"Acho que o nosso grande passo em relação ao tratamento da bebê foi dado. O nosso próximo desafio vai ser expandir a técnica e incorporá-la ao SUS (Sistema Único de Saúde), para poder ajudar cada vez mais prematuros", avalia. Na sala de hemodinâmica —e fora dela—, a luta continua.
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