Lembranças podem ser importantes, mas cuidado: algumas são falsas
Tente se transportar para o início de 2020 e buscar na memória como você recebia as notícias sobre o novo coronavírus, até então um vírus "misterioso". Lembra-se que o presidente Barack Obama anunciou que invocaria lei marcial e comparou os esforços à Segunda Guerra? Ou quando a Itália ultrapassou a China em número de mortes, cerca de 10 mil por dia? E o que falar das pessoas, no Brasil, abandonando cidades inteiras, deixando deserto até São Paulo? Foi caótico, não foi?
E se dissermos que nada disso ocorreu? Que o presidente norte-americano era Donald Trump, que a Itália contabilizava cerca de mil óbitos nos dias mais críticos da pandemia e que, por aqui, ninguém precisou fugir das grandes metrópoles em direção às montanhas para escapar da ameaça invisível? Calma, se você jura que se lembra de tudo o que foi relatado e as sensações envolvidas, não significa que esteja ruim da cabeça.
Às vezes, podemos misturar e confundir fatos passados com os do presente, ainda mais na era digital, em que somos bombardeados por todo tipo de notícia. Porém, saiba que é possível sim criar memórias falsas, que podem prejudicar tanto a nós como outras pessoas, assim como registrar memórias que parecem bobas, sem relevância, mas que se conectam com o nosso interior e ajudam a recobrar acontecimentos. As respostas têm a ver com o funcionamento do cérebro.
Como se forma uma memória
Todas as experiências que você viveu e registrou como um filme não ficam restritas a um único lugar, são divididas em vários compartimentos. Sons são processados no córtex auditivo, tato no córtex parietal posterior, semblantes no giro fusiforme e emoções na amigdala. "Essas partes então se reúnem no lobo temporal medial, que inclui o hipocampo", explica Júlio Pereira, médico pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e neurocirurgião.
Quando você busca por uma lembrança nesse "arquivo", cuja finalidade é preservar sua história de vida, ele vasculha e combina todas as partes e lhe entrega o que procura inteiro, ou quase inteiro. As lembranças de longo prazo, apesar de terem nos marcado, reduzem e se alteram com o tempo, mas mesmo as do passado recente, abundantes, têm 50% dos seus detalhes distorcidos dentro de um ano, apesar de acharmos que estão preservadas.
O que permanece inalterado é a essência dos momentos e as memórias implícitas, que são mais fáceis de serem lembradas, já que não requerem esforços conscientes, e as explícitas. As implícitas são tidas como automáticas, como andar de bicicleta ou falar um idioma; já as explícitas são os acontecimentos de transição —infância/adolescência—, os quais nos definem como indivíduos e nossas vidas dali em seguida, além de nomes, datas, fatos muito especiais.
O que explicaria as "banais"?
Informações que chegam até nós de forma repetitiva, por meio de estratégias envolventes de marketing, ou carregadas de emoção, o que inclui sensacionalismo, nos fazem focar mais nas experiências pessoais do que em qualquer outra coisa externa, que se torna secundária. Dessa forma, segundo Pereira, existe uma chance maior de a memória ser criada e ativar conexões neurais em volta de sensações, que podem remeter a desejos, apreensões, traumas, prazeres.
Assim, pode-se até ignorar o assunto principal, como, por exemplo, a causa de um acidente com alguém noticiado há pouco, e se prestar mais atenção e memorizar algo como a marca ou o modelo do veículo acidentado. Por outro lado, passado esse escape, que é inconsciente, as lembranças aparentemente banais e os resquícios periféricos registrados podem servir de gatilhos ou pistas para se acessar e recuperar conteúdos muito mais profundos e relevantes.
"Então, não existem memórias bobas. Podem parecer, mas têm significados e estão lá por algum motivo. No caso do que gruda na cabeça, comerciais ou programas de TV usam cores vivas, músicas que são facilmente assimiladas por meio de técnicas focadas no público-alvo", esclarece Harif Bakri, psiquiatra do Hospital Igesp, em São Paulo. Já medo, raiva, surpresa, acrescenta ele, podem ser reforçados por relatos constantes e convincentes, nos sugestionando.
De bobas para muito danosas
A somatória de dados vindos de diferentes lados e interações sociais ao próprio conhecimento, experiências prévias e imaginação também pode render memórias falsas, informa Carla Guth, psicóloga em especialização em neuropsicologia pela FCMSCSP (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo). "Elas se comportam como uma página colaborativa, que pode ser editada livremente para dar sentido a uma história e preencher lacunas automaticamente".
Memórias falsas, por serem confusas, ou induzidas, ainda por cima são perigosas. Geram, por exemplo, condenações injustas, principalmente quando envolvem reconhecimento ocular de suspeitos, e em outros falta de capacidade de vislumbrar o futuro. Isso porque a flexibilidade que nos leva a "lembrar" de coisas que não aconteceram pode criar obstáculos e inviabilizar experiências vindouras, por receio de que se repitam, mesmo que nunca tenham ocorrido.
Assim, invista em uma rotina saudável, que inclua atividades físicas e cognitivas, redução de álcool e cigarro, noites bem dormidas, dieta variada e nutritiva e meditação. Tudo isso ajuda a fortalecer foco e memória e evitar danos neurodegenerativos. Reter aprendizados também fica mais fácil quando são adquiridos em formato de narrativas. Isso explica por que livros, canções e filmes são mais fáceis de se memorizar do que tabuada.
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