'Corri S. Silvestre após esclerose múltipla e médico dizer que só pioraria'
Foi na sala de aula que Michelle Chiarello, 42, começou a enxergar os professores do curso de enfermagem duplicados. Era um sintoma da esclerose múltipla, uma doença neurológica em que as células de defesa do organismo atacam o sistema nervoso central.
Foi aposentada por invalidez aos 36 anos, e ouviu de um médico que iria piorar cada dia mais. Decidiu provar que ele estava errado. Em 2021, Michelle correu 15 quilômetros na Corrida de São Silvestre, em São Paulo. "Esse médico me motivou a viver."
"Em 2015, comecei a faculdade de enfermagem. Durante as aulas, enxergava os professores em dupla, eram duas imagens em um único objeto. Esse distúrbio se chama diplopia. Fiquei assustada e fui ao oftalmologista por causa da visão, mas estava tudo bem com meus olhos.
O oftalmologista me encaminhou para um neurologista. Fiz uma ressonância magnética e ali ficaram nítidas algumas lesões no cérebro. Logo recebi o diagnóstico: esclerose múltipla (EM). Foi um baque. Tinha 36 anos na época.
Tinha medo de ficar cega e não ver os meus filhos de 9 e 12 anos crescerem. Passei por um período de luto pela minha saúde. No início, neguei a doença. Não queria acreditar. Pensei que a máquina de ressonância magnética estava estragada. Precisava da segunda opinião de um médico.
Viajei de Campo Grande (MS), onde morava, até a cidade de São Paulo. Fui ao Hospital Israelita Albert Einstein. Lá eles confirmaram que eu tinha mesmo esclerose múltipla. As imagens da ressonância estavam claras desde o início. Eu é que não quis acreditar. Neste momento foi muito importante o apoio da minha mãe, dos meus irmãos, do meu marido e filhos.
Desde então, tomo medicação e faço exames para acompanhar a doença. Já tive cinco surtos, que são um período da ativação mais crítica da EM. O primeiro surto foi a neurite óptica, uma inflamação do nervo do olho. Também sofri com fraqueza nos braços, fraqueza nas pernas, incontinência urinária e neurite óptica novamente.
"Dormi enxergando e acordei cega"
O último surto no olho foi horrível. Tinha me mudado para Florianópolis e estava muito estressada por questões financeiras. Em um dia naquele ano de 2018, dormi enxergando e acordei cega. Chorei muito, mas sabia que era a doença. Fiz uma oração e chamei o meu marido.
Tinha muito medo, mas também muita fé. Sabia que Deus estava do meu lado, e logo voltaria a enxergar. Fiquei internada no Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina por 6 dias. Não deixei me abater. A cada dia a minha visão ficava mais nítida, como se uma fumaça branca fosse sumindo aos poucos. No quarto dia voltei a enxergar.
Perdi uns 20% da visão. Não enxergo uma parte do campo esquerdo. Tive que aprender a lidar com a ansiedade. Sempre pensava: 'Será que vai acontecer um novo surto?'.
A doença se comporta de um modo diferente em cada paciente. Em algumas pessoas vai atingir mais a visão, a fala ou a parte motora. Depende muito da região do cérebro em que os neurônios são atacados pelo sistema imunológico.
Após me recuperar no hospital, troquei de medicação e tive quatro convulsões. Neste período, também desenvolvi a Lemp [Leucoencefalopatia multifocal progressiva], uma doença rara causada pelo vírus JC [John Cunningham]. Ele não faz mal nenhum. Mas, em casos de doenças autoimunes como a esclerose múltipla, o vírus pode ser ativado.
Após este último grande surto, meu plano era fazer o tratamento para melhorar e depois voltar a trabalhar. Não completei o curso de enfermagem, mas sou fonoaudióloga. Fui então até o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] pedir o auxílio-doença por um ano. Mas o médico que me atendeu disse que nunca iria melhorar. Só piorar. E me aposentou.
Ninguém está preparado para se aposentar por invalidez aos 38 anos. Foi tão triste quanto receber o diagnóstico. Mas, de uma certa forma, me motivou a viver. Pensei: 'Tá, o que eu posso fazer agora?'.
"É libertador saber que consigo"
Me inspirei a correr após assistir a um filme chamado '100 metros'. É baseado na história real de um espanhol sedentário que tem esclerose múltipla e vai treinar triatlo.
No primeiro momento, pensei que não conseguiria fazer exercício físico. Mas meu médico me autorizou e incentivou. Eu era sedentária. A doença me deu um chacoalhão. Participei de algumas corridas de 5 quilômetros como portadora de deficiência. Ganhei alguns troféus.
No meio da corrida eu penso: 'O que eu estou fazendo?'. O cansaço da EM não é comum. Como tenho uma lentidão nos impulsos, a sensação é que carrego bolas de aço nas pernas. É pesado. Mas vou devagar, no meu ritmo.
Em 2021, me matriculei em uma academia para fortalecer o corpo. No meio do ano, o instrutor montou um grupo para participar da Corrida de São Silvestre, em São Paulo. São 15 quilômetros de corrida de rua.
Fiquei um pouco apreensiva por conta da doença, mas assisti a alguns vídeos da corrida e me inscrevi.
Foram 3 meses de treino. Quando você coloca um foco, você se empenha. Comprei um tênis bom, me consultei com um nutrólogo e mudei a minha alimentação.
É emocionante participar de uma corrida de rua tão grande. A música, o clima e a organização me animaram o trajeto todo. As pessoas na rua batiam palmas e vibravam comigo. Ao meu lado tinham idosos de 70 e 80 anos, pessoas com muleta, em uma perna só.
Chorei de felicidade a corrida inteira. E ri muito também. Para mim foi libertador saber que consigo. Lembrei das noites em que chorei no hospital e em casa pensando se iria parar em uma cadeira de rodas. Um filme passou na minha cabeça. Pensei no médico do INSS que me aposentou e falou que eu iria piorar, na minha família, no meu médico que me incentivou a correr, nos pacientes.
Corri com balões pendurados no corpo com o nome de familiares, amigos, do meu médico e pessoas com EM. Eles me apoiaram e, de uma certa forma, correram comigo.
A corrida também me deu ânimo para deixar o medo de lado e conversar sobre a esclerose múltipla. Quando recebi o diagnóstico, não me sentia à vontade para falar sobre a doença. Tinha receio de conhecer outros pacientes. Pensava: 'Eles estão melhores ou piores que eu?'.
Mas quanto mais eu falo sobre a doença, menos dolorido é para mim. Hoje sou presidente da Aflorem [Associação Florianópolis e Região de Esclerose Múltipla]. Nunca imaginei ocupar esse cargo. Sempre achei que não conseguiria falar bem em público. Tinha muitas crenças limitantes. Mas a doença reavivou a minha fé e fez eu perceber como sou capaz de tanta coisa que jamais imaginaria conseguir."
Sobre a esclerose múltipla
A esclerose múltipla é uma doença neurológica e autoimune. Ela ocorre quando as células de defesa do organismo atacam o sistema nervoso central, provocando lesões cerebrais e medulares.
Os sintomas dependem do local do sistema nervoso afetado, podendo levar a fraqueza nos músculos e paralisia, perda de sensibilidade, falta de equilíbrio e coordenação, visão dupla, visão turva, entre outros.
Há diversos tratamentos medicamentosos que ajudam a evitar novas lesões. Somados a eles, hábitos saudáveis, como ter uma dieta equilibrada, controle ou redução do estresse e prática de atividade física ajudam a mitigar os sintomas da esclerose múltipla.
Os pacientes são incentivados a ter uma vida normal, dentro de suas limitações físicas. Eles podem trabalhar, estudar, ter filhos e praticar atividades físicas.
Fonte: Adaucto Nóbrega Jr, neurologista do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), e responsável pelo ambulatório de esclerose múltipla e doenças desmielinizantes na instituição.
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